Localizada no Parque Nacional dos Aparados da Serra, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a Trilha do Rio do Boi reserva aos seus visitantes um misto de espanto, admiração e, ao mesmo tempo, medo – nos pontos mais desafiadores da caminhada de 14 quilômetros. Em média, são quase oito horas de uma jornada que se inicia em meio à mata fechada de Praia Grande, em Santa Catarina, e chega ao ápice entre os paredões de até 700 metros do cânion Itaimbezinho, que, em sua parte de cima, pertence a Cambará do Sul (RS).
A equipe de reportagem de GaúchaZH, acompanhada de três representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de dois guias da agência de turismo Cânions do Brasil e de um casal de turistas de São Paulo, fez o percurso em 14 de fevereiro, um dos dias em que a trilha foi aberta – o grau de dificuldade impede a abertura da rota quando chove na véspera ou na data agendada.
Não faremos duas coisas ao mesmo tempo. Andando é andando. Se quiser fotografar, pare. O mesmo vale para beber água.”
GUILHERME MOELLER MAINIERI
Guia
A cada dia, 132 pessoas podem entrar no parque. Antes de começar a caminhada, os guias César Padilha do Nascimento, 34 anos, e Guilherme Moeller Mainieri, 43, orientaram sobre os cuidados durante a trilha e explicaram que a maior parte do trajeto é feita pelo leito do Rio do Boi – o nome remete ao período em que havia fazendas na parte de cima do Itaimbezinho e muitos bois caíam do alto do cânion.
— Não faremos duas coisas ao mesmo tempo. Andando é andando. Se quiser fotografar, pare. O mesmo vale para beber água — indicou Mainieri.
Antes de completar 10 minutos de jornada, uma das participantes desistiu por temer não vencer o desafio. A etapa de aquecimento – ainda num trecho em linha reta – foi concluída em 20 minutos.
A Trilha do Rio do Boi começou realmente em uma subida por um estreito caminho, onde as árvores e suas raízes expostas se tornam corrimões para manter o equilíbrio em um lugar com grau de inclinação maior. O fôlego quase sumiu pela primeira vez. Foi possível ouvir a respiração ofegante de quem estava próximo. Pelo trajeto, muros de taipa de pedra e restos de moendas de cana, em madeira e metal. Os guias explicaram que a área havia sido habitada até 1974, quando houve um grande deslizamento e as famílias desistiram de permanecer no local. Elas foram indenizadas pelo parque, que já existia desde 1959, e se mudaram.
Depois de quase uma hora e meia caminhando pela floresta, os trilheiros iniciaram a descida mais íngreme, apoiados por cordas instaladas entre as árvores. Esforço válido: no final do trecho, estava o leito do Rio do Boi. Foi a primeira parada para se hidratar e fazer um pequeno lanche. Em seguida, o grupo andou por cerca de 150 metros sobre as pedras do leito do rio para fazer a travessia. O medo da água gelada deu lugar à tensão ao ver a correnteza.
As travessias
De mãos dadas, para ter estabilidade, e caminhando feito um siri, com passos curtos e laterais sobre as pedras escorregadias, a equipe de 10 pessoas – incluindo esta repórter, o repórter fotográfico Marco Favero e o motorista Vanilson Duarte – iniciou a primeira das 20 travessias sobre o Rio do Boi. Na data da trilha, o leito estava na metade da altura considerada máxima para a travessia. Havia chovido forte dias antes, aumentando a correnteza. A altura da água varia dos joelhos até a cintura, devido aos buracos dentro do rio. As mãos iam se soltando conforme o trilheiro da frente alcançava um ponto seguro.
Parada estratégica
Pelo caminho, paredões verdes, repletos de musgos, ou de pedras vão ficando para trás. Como é preciso prestar muita atenção no trajeto, para admirar a paisagem é necessário diminuir o ritmo e, se for o caso, parar. Segundos de contemplação que valem todo o cansaço antes de alcançar a cascata Leite de Moça, de 30 metros, em duas horas de caminhada. O banho no local é opcional. A maior parte dos trilheiros comemorou a hora de se refrescar.
Braço Forte
Por ficar encravada numa área entre pedras e do lado contrário da trilha, a segunda cachoeira do trecho, a do Braço Forte, costuma ser aproveitada no retorno ao ponto inicial. Quem se atreve a um banho na própria cachoeira, nesta época, acaba enfrentando um forte vento que desce do abismo e quase empurra o banhista para fora da água. Mas a piscina no entorno valeu mais a pena do que a própria queda. O que assustou os trilheiros foram as dezenas de aranhas no paredão onde era necessário apoiar uma das mãos para completar a travessia por dentro da água.
Observação em 360º
Pouco antes da última travessia sobre o rio na ida da trilha, o grupo ainda parou num ponto estratégico, de onde observamos três cachoeiras: a Verde, a Escondida e a Jurássica, mais ao fundo. A sensação foi de viver em uma era pré-histórica, quando a Terra era um lugar apenas com florestas, animais, água cristalina e sem a presença humana. Naquele momento, por volta das 12h45min, apenas os 10 integrantes do grupo estavam no local.
O cartão-postal
— Aqui é nosso final, conhecido também como meio porque teremos que retornar daqui a pouco — disse o guia César Padilha do Nascimento na chegada ao objetivo da equipe.
Do ponto, o corredor de paredões parece se abrir feito uma cortina para ver ao longe o mirante do Cotovelo, no alto do cânion Itaimbezinho.
Como há recorrência de queda de pedras dos paredões, os guias orientaram sobre os cuidados no local – os trilheiros podem fotografar, tomar um banho nas águas mais calmas e fazer o lanche maior, antes de se prepararem para o retorno.
Moradores de Jaú (SP), a supervisora de ensino Mércia Frugoli, 53 anos, e o agrônomo Eduardo Frugoli, 57, aproveitaram para descansar depois da terceira trilha na região em três dias.
— Achei que não fosse dar conta do caminho. Difícil devido às pedras, mas conseguimos — disse Mércia.
— É um visual muito diferente do que já vimos. A grandiosidade de tudo é incrível — finalizou Eduardo, sem se importar de ter caminhado por cinco horas com uma das solas dos tênis amarrada com uma corda de borracha depois de quase perdê-la dentro do rio.
O corpo fala
Ao longo da caminhada, o corpo começou a falar. Alguns tiveram cãibras e dores musculares. Outros diziam já não sentir as pernas no retorno. Estavam no automático. Mas um misto de endorfina e adrenalina fez a equipe esquecer as próprias limitações e seguir unida até o final. Na chegada, aplausos e abraços. O Rio do Boi havia ficado para trás.
Como chegar
- A entrada do parque fica na Estrada Geral do Rio do Boi, a 12 quilômetros de Praia Grande (SC), que, por sua vez, fica a 230 quilômetros de Porto Alegre.
- É necessário o agendamento junto ao Parque Nacional de Aparados da Serra (bit.ly/rio-doboi) ou pelas secretarias de Turismo de Cambará do Sul (fone 54 3251-1557) ou Praia Grande (48 3532-1425).
- A trilha é considerada de nível pesado, mesmo para quem já tem experiência com trilhas.
- É exigida a presença de um guia credenciado. Eles podem ser contratados via agência de turismo ou em Praia Grande, onde nativos preparados fazem o trajeto.
- O parque abre às 7h, e os visitantes precisam deixar a trilha até as 18h. Por dia, 132 visitantes são autorizados a entrar. Não é cobrado ingresso.
- Informações: icmbio.gov.br/parnaaparadosdaserra
O que levar na trilha
- Use roupas de trilha e vá com roupa de banho por baixo.
- Calce tênis ou bota de trilha.
- Leve protetor solar e repelente.
- Se preferir, leve uma muda leve de roupa para trocar no final da caminhada.
- Coloque uma meia de cano longo por baixo da perneira (necessária para evitar picada de cobras).
- Carregue um litro de água (o restante será preenchido com água potável de um trecho do rio) e lanches leves (frutas, barras de cereais, biscoitos ou sanduíches são recomendáveis).
O trilheiro tem de ter
- Resistência física: fundamental nas subidas e descidas íngremes por dentro da mata.
- Atenção redobrada: necessária, principalmente, na caminhada sobre as pedras e dentro do leito do rio onde há muitas soltas.
- Equilíbrio: praticamente 80% da trilha exige equilíbrio do visitante, seja dentro da mata ou na caminhada ao lado e pelo rio.