Pode-se afirmar com segurança que a jogatina existe em Deadwood, no Estado de Dakota do Sul, desde que dois mineiros se juntaram para apostar pepitas de ouro em – ou contra – alguma coisa, o que provavelmente foi em 1876. Enquanto o centenário dos Estados Unidos era comemorado na Filadélfia, seu espírito estava sendo celebrado nessa ravina de Black Hills por homens e mulheres saídos de todos os cantos do país para fazer fortuna com a bateia – ou, no mínimo, ganhar algum com quem queria fazer fortuna com a peneira do garimpo. Poucos ficaram ricos; pouquíssimos se tornaram lenda.
Wild Bill Hickok, tendo desistido da carreira de policial, chegou ali para tentar achar ouro, mas logo decidiu que preferia fazer fortuna no carteado. Foi morto a tiros no Saloon No. 10, enquanto segurava um par de ases e um par de oitos, o que ficou conhecida como Dead Man’s Hand (Mão do Homem Morto).
Hoje, há cassinos por toda parte em Deadwood, até no Bullock, hotel mais antigo da cidade, que ganhou o nome de Seth Bullock, um dos primeiros a chegar, homem de negócios e xerife que construiu o estabelecimento com o sócio, Solomon Star, por volta de 1890. Bullock, que tinha um bigodão de morsa bem no estilo da época, foi interpretado na série Deadwood da HBO, entre 2004 e 2006, por Timothy Olyphant. O inimigo de Bullock, Al Swearengen, dono do bar e cafetão, foi interpretado por Ian McShane.
Se você assistiu ao seriado ou ao telefilme homônimo (em que Olyphant e McShane reencarnam seus personagens que, nos EUA, estreou no final de maio, talvez fique aliviado em saber que o estabelecimento um tanto volátil de Swearengen, o Gem, já não existe há tempos. Mas seu nome enfeita outro, bem mais novo, parte de um hotel que tem um cassino ocupando praticamente todo o seu primeiro andar. Já o restaurante do segundo andar oferece um café da manhã bastante civilizado, completo, com direito a molho hollandaise.
O novo Gem é um dos poucos edifícios modernos no centro; o resto, na maioria estruturas vitorianas, foi reformado com bom gosto. Esse tipo de preservação histórica sensível não é barata, o que explica os cassinos.
— O jogo foi legalizado em 1989 expressamente para gerar verba para a preservação do Downtown Core District — conta o arquivista Mike Runge.
A meu ver, uma solução apropriada; afinal, não só a jogatina (legalizada ou não) faz parte de Deadwood desde a fundação da cidade, como aquilo que levou os primeiros colonizadores para cá, no século 19 – a mineração de ouro –, era, em si, uma grande aposta, como qualquer jogo de azar.
E, no caso de Deadwood, perdedora: quase todo o minério encontrado ali era pirita, também conhecida como “ouro de tolo”.
Bangue-bangue de mentirinha
Quando se trata de história, Deadwood é um filão. As Black Hills seduzem os visitantes desde os tempos mais remotos. Por volta de 12 mil a.C., dezenas de mamutes, atraídos por uma colina cheia d’água nas proximidades do que hoje é a cidadezinha de Hot Springs, umas duas horas ao sul de Deadwood, ali caíram e ficaram presos. Hoje é possível ver seus restos mortais no museu que há no local. Desde 1938, motoqueiros são atraídos para a cidadezinha de Sturgis, aproximadamente 24 quilômetros a leste, graças a um rali realizado todo ano, em agosto, e que se transformou em um evento de 10 dias que atrai 500 mil visitantes. O escultor Gutzon Borglum foi atraído, nos anos 1920, para esculpir o rosto de quatro presidentes do Monte Rushmore, e o também escultor Korczak Ziolkowski foi atraído, nos anos 1940, para esculpir o guerreiro lakota Cavalo Louco na Montanha Thunderhead, a 24 quilômetros do Rushmore.
Não se sabe se o índio teria apreciado a homenagem: para sua tribo, as Black Hills eram local sagrado. De certa forma, para os EUA também, pelo menos depois de 1874, quando George Armstrong Custer liderou uma expedição que descobriu ouro ali. Mais do que depressa, o governo rompeu um tratado recém-assinado que prometia a área para os sioux para todo o sempre, e a abriu a novos colonizadores. Logo depois de sua fundação, Deadwood já tinha 5 mil habitantes. Tudo aconteceu tão rápido, que não houve tempo para asfaltar as ruas ou estabelecer o Estado de direito, digamos assim. Muita gente foi morta a tiros nos primeiros tempos. Wild Bill é apenas o mais bem lembrado.
Se você for ao Saloon No. 10 às 13h, 15h, 17h ou 19h quase todos os dias, na alta temporada, poderá erguer o olhar acima da cabeça dos turistas degustando um bom filé de costela ou qualquer outro prato igualmente regional e ver Wild Bill, ou alguém que se parece demais com ele, contando sua vida como homem da lei e pistoleiro, fazendo questão de desmentir, um tanto indelicadamente, os boatos de que teve um caso com Calamity Jane. Se ficar para a apresentação toda, você pode testemunhar o grosseirão Jack McCall se levantar por trás do dono da Mão do Homem Morto e despachá-lo para o outro mundo com dois ou três tiros. E, se por acaso estiver vendo a última do dia, pode acompanhar a ação que vai parar na rua, com McCall sendo preso e levado para o antigo Templo Maçônico, dentro do qual você pode até se sentar e acompanhar o julgamento.
De modo geral, a justiça na fronteira era tal que você tinha mais chances de ser enforcado por roubar um cavalo do que por matar outra pessoa. Talvez isso explique por que havia tantos tiroteios em Deadwood na época (o que por sua vez pode explicar por que há tantos hoje). Se não puder ir ao No. 10, você pode conferir um na Main Street, todo dia às 14h, 16h e 18h. Nos intervalos, pode passear pelas calçadas, passando por vários outros bares, uma clínica estética ou duas, um salão de degustação de vinho ou dois e um sem-fim de lojas de lembrancinhas.
Do museu ao cemitério, a história da cidade
Se você não passar mais tempo em Deadwood do que é necessário para perder US$ 40 na mesa de vinte-e-um, talvez saia com a falsa impressão de que antigamente todo mundo que vivia ali se via constantemente de um lado ou do outro de um Colt. De fato, a maioria dos cidadãos locais era pacata, correndo atrás do sonho americano. Havia oportunidades e bastante ouro de verdade nas proximidades. E, no fim das contas, até o ouro de tolo provou ter valor: a pirita era usada para fazer ácido sulfúrico que, por sua vez, era usado para processar o ouro verdadeiro.
Havia chance para aqueles que eram desprezados em outras paragens. Uma comunidade chinesa prosperou aqui, abriu tinturarias, restaurantes, farmácias. O mesmo aconteceu com os judeus, com lojas de mercadorias e mercearias.
Você pode saber muito mais sobre esses grupos e vários de seus membros mais famosos – e praticamente toda pessoa de destaque que já viveu aqui e o que fazia – no Museu Adams, fonte histórica excelente, uma das melhores que já encontrei para uma cidade desse tamanho (a população fixa de Deadwood é de apenas 1,2 mil habitantes). Entretanto, por mais estranho que pareça, todas elas ganham vida para valer se você fizer a caminhada para chegar ao Cemitério Mount Moriah, no topo das colinas acima da ravina.
A entrada custa US$ 2 e você vai ter de encarar umas ladeiras brabas, mas vale muito a pena, e não só pela bela vista que se tem da cidade. A maioria dos visitantes não se aventura muito além do monumento a Wild Bill, que fica logo na entrada, mas deixa dinheiro, baralhos, maços de cigarro e garrafinhas de bebida em seu túmulo.
A história de Deadwood está em todas as encostas verdejantes e pitorescas do Mount Moriah: na ala chinesa, que contém poucas lápides (é comum enviarem os mortos de volta à terra natal para serem enterrados lá), na seção judaica, ou Monte Zion (a “Colina Hebraica”), onde você encontrará Levinsons e Goldblooms e centenas de outros (mas não Solomon Star, encarnado por John Hawkes na série, que chegou a 10 mandatos como prefeito de Deadwood: ele está em St. Louis). É ali, no grande espaço reservado aos maçons, criado para parecer uma pousada celestial, nas valas comuns para as vítimas das epidemias devastadoras e incêndios catastróficos e nos túmulos das pessoas comuns, que fica bem claro: Deadwood foi muito mais do que lendas e trocas de tiros.
Suas histórias podem não dar roteiro de série dramática no horário nobre de TV a cabo, mas, sem dúvida, representam a vida do dia a dia durante a expansão dolorosa, muitas vezes traumática, de uma nação que, um dia, veria esse período com saudade, admiração e o desejo de resgatá-lo, de alguma forma, em... uma série dramática no horário nobre de TV a cabo.
Por Richard Rubin