Chegar a essa cidade ampla e dinâmica sem ideias preconcebidas, seja sobre biquínis ou sobre Jair Bolsonaro, é simplesmente impossível, mas o Rio de Janeiro sempre encontra um jeito de surpreender – pode ser com o morador simpático que o acompanha àquela loja que você não está conseguindo achar, com as evidências incontestáveis do tráfico de escravos ou com a descoberta de que a comida fica muito mais gostosa quando consumida na calçada, de pé, em meio ao som melífluo do português, acompanhada por uma cerveja tão gelada, que até dói por dentro. Da praia ao museu, da igreja à feira, o Rio é uma cidade em constante desafio dos próprios mitos que convida o visitante a fazer parte do entusiasmo local.
Meu roteiro começou às 15h de uma sexta-feira, com um almoço vegetariano. A culinária brasileira tem uma base forte nas carnes e nos frutos do mar, por isso é um prazer enorme encontrar pratos vegetarianos que não são nem fritos, nem sem graça. O Naturalie abre só para almoço, e o cardápio (quase todo vegano e sem glúten) explora os bons produtos locais como a mandioca e o coco. As saladas são acompanhadas de um molho rosa intenso, à base de beterraba; a feijoada substitui o porco pelo tofu; os sucos são frescos e incluem ingredientes como maracujá, flor de hibisco e goji berry e não vêm com açúcar. A casa é bem pensada, despretensiosa e, por acaso, vegetariana. O almoço para duas pessoas sai, em média, por R$ 100.
Depois, saí às compras. A zona sul do Rio abriga os bairros descolados de Ipanema e Copacabana, que também têm as melhores praias, faixas de areia impecável onde as ondas quebram mansas. Roupa de banho é na Blue Man, grife tradicional brasileira com biquínis chamativos e maiôs com estampas divertidas (preços a partir de R$ 150). A Osklen, outra marca nacional famosa, também vale uma espiada, principalmente as camisetas elegantes em linho e seda e a nova linha, com estampas de obras de Tarsila do Amaral (seus trabalhos ganharam mostra no MoMA, em Nova York, no ano passado). Na Monica Pondé, virando a esquina, o destaque são os colares de prata polida com inspiração geométrica (a designer estudou Arquitetura); para recuperar o fôlego, tome um cafezinho na cafeteria logo ao lado. Faça a última parada na Toca do Vinicius, loja para os amantes da música, que oferece bolachões antigos e lançamentos em CD de bossa nova e samba.
Noites cariocas
O Pavão Azul é uma excelente pedida para o início de noite no Rio. Lotada com o pessoal que acabou de sair do trabalho, a casa é famosa pelas pataniscas, ou bolinhos de bacalhau e cebola servidos com cerveja supergelada. Se tiver coragem, experimente a mistura caseira de vodca e coco, deliciosa e bem forte. Dali, siga para o Galeto Sat’s, restaurante casual com uma dúzia de mesas e, por trás do balcão, um fogareiro com espetos gigantes. Para começar, uma cestinha do famoso pão de alho, amanteigado e bem picante, e uma porção de coraçõezinhos suculentos enquanto o galeto não sai. O jantar para dois custa por volta de R$ 120.
Às 22h, bateu a hora do samba. O Bip-Bip chega aos 60 anos apesar de ser aquele tipo de bar que faz de tudo para não conquistar clientes novos: os únicos assentos são reservados para os músicos e os amigos da casa, e a cerveja, que se resume a uma seleção de marcas nacionais e umas latas de Heineken, está em uma geladeira na parte de trás – é você que tem que pegar. Alfredinho, o dono, fica sentado com o caderninho, marcando o consumo (cada unidade sai por cerca de R$ 6) e o volume da conversa. A música, porém, vale o dobro de todo os inconvenientes. A roda é de samba ou bossa nova de qualidade – e os frequentadores se acabam de dançar e cantar.
Maratona de bares do Leblon ao Botafogo
O bairro do Leblon, onde estão alguns dos melhores bares e restaurantes, está cada vez mais badalado. Pare no Mixxing para o aperitivo. Aconchegante, o bar tem DJ e um punhado de clientes fiéis que sabem que as invenções da casa são opções espertas e caprichadíssimas. O jantar é no Oro, que recebeu a segunda estrela do guia Michelin em 2018. O chef, Felipe Bronze, criou um menu degustação que começa com pão de batata doce com manteiga defumada de catupiry e parte para pratos modernos como tapioca granulada com camarão e chuchu e nhoque de gema curada (atenção: o jantar para duas pessoas sai por R$ 670).
Depois, continue no Botafogo para fazer a famosa maratona de bares, começando com uma mesa de calçada do pequeno WineHouse, que vende vinhos nacionais, inclusive por copo (experimente o espumante). De lá, siga para o descolado CoLAB, uma mistura de bar, café e salão de festas que serve pale ales americanas e cervejas de trigo nas torneiras, tem música ao vivo e um público jovem e falante nas mesas compartilhadas. Ali perto fica o Comuna, com sanduíches, drinques e música eletrônica mansa, perfeita para a madrugada.
O Museu do Amanhã e a escravidão de ontem
O Museu do Amanhã, projetado por Santiago Calatrava, foi inaugurado com grande alarde em 2015. As exposições são, na maioria, virtuais, mas o conteúdo em si prefere se concentrar mais a natureza da comunidade, a sustentabilidade e a previsão de desastres e não nos cenários futuristas. Impressionante mesmo são as instalações e o exterior da estrutura (ingressos a R$ 20). Confira os espelhos d’água, as linhas audaciosas (que já foram comparadas a tudo, desde nave espacial a crocodilo) e depois siga para o Museu de Arte do Rio (ingresso a R$ 20), do outro lado da praça. Dinâmico, organiza principalmente mostras de artistas brasileiros. Não deixe de visitar a cobertura, de onde é possível ver o retrato gravado na pedra, na lateral do prédio vizinho, feito pelo artista português Alexandre Farto, conhecido como Vhils.
A história afro-brasileira e o comércio de escravos em particular são parte intrínseca, ainda que pouco estudada, da herança brasileira. Passe algumas horas conferindo o seu legado, a começar com o almoço no Angu do Gomes. Como o nome diz, o restaurante, inaugurado em 1955, serve angu e cozido de carne de origem africana (almoço para dois, R$ 150). De lá, parta para o Cais do Valongo, considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, ponto de chegada de quase um milhão de escravos, a maioria da África Ocidental e Central. Na verdade, o local só foi redescoberto em meio às escavações necessárias para os Jogos Olímpicos de 2016. Não muito longe dali fica a Praça XV que, apesar de ampla, atualmente não oferece muitas atrações, mas já foi palco de leilões de escravos.
O Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (aberto das 11h às 14h, entrada franca) é um museu pequeno, mas sóbrio, que aborda o tráfico escravocrata – e foi construído sobre um cemitério. Aliás, ainda dá para ver resquícios das ossadas no piso.
Da igreja à feira, um programa de domingo
Todo domingo, às 10h, o Mosteiro de São Bento abre suas portas para a missa que inclui uma impressionante sessão de canto gregoriano. A igreja, que data do século 17, é forrada de ouro e conta com uma série de arcos que leva à plataforma elevada na qual os monges cantam e rezam. Dá para acompanhar a cerimônia com o folheto distribuído na entrada. Curioso que, em uma cidade cuja população é tão diversa racialmente, todas as estátuas tenham feições brancas.
Na saída da igreja, a pedida é uma visita à colorida Feira da Glória, montada ao lado da Praça Paris todos os domingos. Se quiser um café da manhã tardio ou um almoço antes da hora, vá de panqueca de tapioca recheada de queijo e presunto, um pratinho de abacaxi em fatias, garapa ou sushi, e saia andando pelas barracas para ver e ouvir os feirantes anunciando seus produtos aos berros. Em uma das pontas, há até peixes de aquário e roupas usadas à venda, além de música ao vivo (que geralmente inclui músicos de muita categoria).
Uma vista extraordinária
Em vez de encarar a fila para pegar o bondinho e subir o Pão de Açúcar, por que não explorá-lo a partir da base? A Pista Claudio Coutinho é íngreme e dá vista para as árvores nativas de um lado e, no outro, as ondas quebrando nas pedras. Depois de um belo exercício, siga na direção oposta (ou pegue um táxi, a corrida é curta), rumo ao Bar Urca, verdadeira instituição local que serve pastel de carne crocante, bobó de camarão, cerveja gelada e bolinhos de bacalhau (porções e cerveja para dois: R$ 130). Para terminar, pegue o que estiver comendo ou bebendo e faça como parte da clientela, que se esparrama do outro lado da rua, de frente para o mar e para os barcos.
Hora(s) de praia
Copacabana pode ser famosa quase a ponto de virar clichê, mas continua sendo uma das melhores praias urbanas do mundo. Nos quiosques, dá para comprar chope, caipirinha e saquinhos de Globo (o famoso biscoito de polvilho), há times de homens usando calções de banho minúsculos jogando futevôlei, camelôs vendendo saídas de banho com a bandeira do Brasil e todo mundo se diverte horrores.
A 10 minutos a pé, fica a Praia do Arpoador, para quem quiser ver os surfistas acompanhados de gaivotas esperando pela onda perfeita. Se ainda estiver por ali no fim do dia, junte-se aos grupos que se reúnem sobre as pedras para admirar o pôr do sol. E ainda tem Ipanema! O que não falta é praia no Rio.
Onde ficar
Há inúmeras opções de Airbnb; a diária do apartamento de um quarto, por exemplo, geralmente sai por menos de US$ 50 (dependendo da estação). Botafogo e Flamengo são bairros centrais situados entre as praias da zona sul e as opções culturais da Zona Norte.
O minimalista Praia Ipanema (diárias a partir de R$ 490, café da manhã incluído), de frente para o mar, não poderia ser mais perto da praia. Todos os quartos têm sacada e os que ficam nos andares superiores, vista para o mar. Há também um estande na praia, com cadeiras e toalhas de graça.
No meio do caminho entre a região do porto e a Zona Sul, o badalado Yoo2, projetado por Philippe Starck (diárias a partir de R$ 270, incluem café da manhã) tem ótima localização para quem quer explorar a cidade. A piscina na cobertura é pequena, mas oferece uma vista impecável do Cristo de um lado e da Praia de Botafogo na outra.
Por Nell McShane Wulfhart