Este texto integra a série Inspirações, sobre pessoas que acharam nas viagens um meio de viver. Leia mais histórias aqui.
Eles não cabiam mais na rotina, mas descobriram que a vida podia caber em um motorhome dois por três. Esse é todo o espaço de que Evelize Leoncio e Lucas Miguel dispõem para dormir, cozinhar e planejar o itinerário da manhã seguinte, já que (a maior) parte de viver em um motor home significa pôr o pé na estrada – todos os dias.
Para embarcar no novo e motorizado lar, o casal de namorados colocou a vida inteira dentro de dois pares de malas e caiu na estrada, desbravando novos lugares da Europa. Todas as manhãs quando acordam, a paisagem do outro lado da janela é diferente da do dia anterior. Pode ser um parque em Dormagen, na Alemanha, ou os moinhos de Kinderdijk, na Holanda.
Desde o início de agosto, as estradas europeias são o “quintal de casa” dos namorados. Ela tem 23 anos e é de Caxias do Sul. Ele está com 32 e é de São Paulo. Os dois se conheceram no ano passado, em Dublin e, agora, largaram os empregos na capital irlandesa para levar uma vida nômade pela Europa. O plano ousado começou a sair do papel em fevereiro, quando compraram pela internet, praticamente às cegas, um Fiat Talento CI, carinhosamente batizado de Rogerinho. Pagaram 4,2 mil euros pelo motorhome – 6 mil, com as taxas e o seguro.
– Pegamos o Rogerinho só em agosto, na Holanda – conta ele.
Foi de lá que a jornada nômade começou. A primeira noite no motor home, eles passaram em uma garagem em Utrech. De lá para cá, rodaram a Holanda inteira. Na noite que passaram em Amsterdã, perderam uma janela do motor home. “Foi o vento”, concluíram, e, desde então, antes de dormir, eles se certificam de que tudo está devidamente trancado para garantir que Rogerinho não vai perder nenhum outro membro.
Com pouco mais de seis metros quadrados, a “casa móvel” conta com uma cama, que fica sobre o banco do motorista, uma mesa que se transforma em sofá, armários, geladeira, fogão, um aquecedor central que não funciona e um chuveiro que não aquece. Para tomar banho, eles esquentam a água no fogão e usam garrafinhas de plástico.
– Desde o início, a gente pensou que a parte mais difícil de viver em um motor home seria o banho. Em Dublin, eu gastava cerca de 30 litros d’água para tomar banho, agora um litro é suficiente para mim. Chuveiro é uma coisa boa, mas não é essencial – conta Evelize.
O motor home dispõe de um tanque de água de 60 litros, mas o casal também mantém cheios dois galões de 14 litros, que eles completam sempre que param em alguma cidade onde dá para abastecer. Sem isso, as reservas de água deles duram, aproximadamente, cinco dias.
Mas água não tem sido um problema, porque conseguem de graça e em quase todos os lugares. O tanque que mais pesa no bolso é outro: em média, são 190 euros por semana só para o combustível. É mais do que gastam com alimentação, despesa que exige cerca de 30 euros por semana. Mas nada de comer fora. Eles preparam toda a comida na cozinha do motor home, pois, de outro modo, as refeições sairiam bem mais caras.
Não é só a comida que eles carregam para os locais que visitam. Evelize e Lucas gostam de deixar registrado todos os lugares por onde passam, e isso significa equilibrar a marmita em uma mão e os equipamentos na outra. Além das câmeras, compraram um drone (que também foi batizado e se chama Betinho). As imagens todo mundo pode ver no canal do YouTube e no perfil do Instagram que eles criaram para registrar a viagem e por meio dos quais todo mundo pode ficar sabendo por onde eles andam.
– Não serve só para publicar as fotos e os vídeos que a gente faz. É também para registrar os problemas, as coisas ruins que acontecem – conta Evelize.
Antes da jornada nômade, ela já trabalhava com imagens em estúdio de fotografia em Dublin. Lucas também era empregado em um estúdio lá, mas com animação 3D. Para editar o material que produzem pela estrada, eles às vezes passam o dia em bibliotecas ou, na falta destas, em lanchonetes. Como Evelize conseguiu a cidadania italiana e Lucas já tinha o passaporte português, eles podem viajar pelos países europeus sem precisar de visto.
Um dia de cada vez
Para continuar na estrada, eles não descartam outras atividades, como trabalhos temporários em fazendas, ajudando em colheitas e na criação de animais, e serviços como o Workaway, no qual viajantes colaboram com algumas horas de ajuda por dia e recebem, em troca, acomodação, comida e outros benefícios do anfitrião.
– Nós nos organizamos por mais de um ano para isso e temos dinheiro para seis meses. Nossas despesas mensais são de, aproximadamente, 650 euros, o que é bem menos do que a gente precisava para viver em Dublin – explica Lucas.
Na Irlanda, onde ele morava com o irmão, só o aluguel do apartamento custava mil euros. Evelize, por sua vez, pagava 400 euros por mês em uma pensão, onde os cômodos eram compartilhados entre 15 inquilinos, a maioria estudantes.
– Nos ensinam que devemos fazer faculdade, arranjar um emprego, ter uma casa, mas nós queríamos levar uma vida diferente – conta a caxiense.
Atualmente na Alemanha, pretendiam chegar a Munique a tempo da Oktoberfest, que começou no final de semana. Depois, vão fazer uma visita rápida à República Tcheca e passar um mês viajando pela Áustria. Também querem percorrer as estradas da Suíça e da França e passar o inverno em Portugal e na Espanha, onde esperam que o frio não seja tão inclemente com eles e com Rogerinho. Mas os planos param por aí. Depois disso, nem eles sabem aonde vão parar.
– Estamos vivendo um dia de cada vez. Se, no futuro, a gente tiver que voltar, a gente vai voltar. Não temos problema com isso – diz Evelize.
Lucas é mais filosófico:
– A gente nunca vai voltar. Não do mesmo jeito. Se a gente voltar depois dessa experiência, mesmo assim, nada vai ser como era antes.