Nesta terça-feira (31), está sendo celebrado de forma intensa na Alemanha. Há exatos 500 anos, Martinho Lutero publicou suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, dando início ao que hoje conhecemos como Reforma Protestante.
A intenção do padre e professor era debater, de forma aberta e franca, a cobrança de indulgências pela Igreja Católica, que exigia consideráveis quantias para conceder o perdão a seus fiéis. Mas o trabalho de Lutero acabou indo muito mais longe e provocou uma revolução que transformou a economia, as artes, a linguagem, o próprio catolicismo, dando início a uma nova vertente do cristianismo, o luteranismo.
Como um país que cuida muito bem de sua história, a Alemanha organizou uma série de atividades para lembrar este 31 de outubro. O turismo não ficou de fora, e diversos roteiros relacionados ao tema foram criados. A convite do governo alemão, percorri um deles ao lado de um grupo de jornalistas em maio deste ano e tive a oportunidade de ver o imenso legado deixado pela Reforma, mesmo em cidades que nada ou pouco tinham a ver com a discussão proposta por Lutero.
Visitamos quatro destinos que dificilmente entrariam no planejamento de uma viagem convencional, mas que proporcionam paisagens incríveis, boa gastronomia, um acolhimento carinhoso e muita história.
Começamos por Bretten, cidade com menos de 30 mil habitantes que fica a pouco menos de duas horas de Frankfurt e é um importante destino para quem busca turismo religioso. Foi lá que, em 1497, nasceu Phillip Melanchthon, professor, humanista, reformador e amigo de Martinho Lutero. Bretten exibe com orgulho a história de seu filho mais ilustre e ergueu, entre os anos de 1897 e 1903, um memorial no mesmo local onde ele nasceu — a casa original foi queimada em um grande incêndio em 1689.
O museu, em estilo neogótico, fica na praça do mercado, região central da cidade. Lá é possível encontrar 450 manuscritos originais de Melanchthon, além de estátuas, obras de arte, pinturas e moedas comemorativas. Vale a pena fazer a visita guiada (que precisa ser marcada com antecedência) e conhecer em detalhes a obra desse professor que ficou conhecido como "educador da Alemanha" e foi o principal líder da Reforma Protestante antes de Lutero.
O memorial a Melanchthon é o maior ponto turístico de Bretten, mas está longe de ser sua única atração. A cidade medieval — a primeira menção ao local é do ano de 767 — parece um cartão-postal: a praça do mercado é repleta de prédios em estilo enxaimel. Ruas estreitas, quase nenhum carro passando, cafés e restaurantes ao ar livre em um clima pacato e amigável completam o cenário que merece pelo menos um dia para ser bem aproveitado.
Festival medieval
Se você tiver a oportunidade de organizar uma ida a Bretten com antecedência, considere ir em julho. Todos os anos, no primeiro final de semana do mês, a cidade realiza o Peter-und-Paul-Fest, um festival medieval que reúne cerca de 120 mil pessoas (ou seja, a população praticamente quadriplica). É uma volta ao passado: por quatro dias, as pessoas se vestem como os medievais e tomam as ruas, com direito a simulação de batalhas. Não tive a oportunidade de conhecer, mas a julgar pelo orgulho com que os habitantes falam do festival e da enorme imagem da festa que recepciona os visitantes na entrada da cidade, o evento é imperdível.
O fim de um mosteiro em Maulbronn
Bem pertinho de Bretten (apenas 12 minutos de carro) está a cidade de Maulbronn, outro destino importante para quem curte turismo religioso. É lá que fica um dos mais completos e bem preservados mosteiros medievais de toda a Europa. O cenário é impressionante: um complexo todo protegido por muralhas e torres, que abriga diversos prédios de diferentes estilos arquitetônicos — do romanesco ao gótico — e uma linda e enorme igreja.
A construção do local, estrategicamente escolhido por ser próximo a um lago, começou em 1147. Por tamanha importância histórica e cultural, o mosteiro foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco em 1993.
Passar pelos portões do mosteiro é como entrar em um mundo à parte. A visita permite entender a vida e o trabalho dos monges da ordem cisterciense entre os séculos 12 e 16. Vivendo em isolamento, os habitantes precisavam manter todo o complexo funcionando, e inúmeras atividades econômicas — principalmente a agricultura e a piscicultura — eram desenvolvidas por lá. Muito ainda pode ser visto, como o inteligente sistema de utilização da água.
O tour guiado pelos prédios proporciona um conhecimento detalhado da rotina do mosteiro. É possível visitar o espaço que abrigava o refeitório, as salas de oração e até a antiga caldeira. Cada peça abriga uma história, uma curiosidade que torna a visita realmente fascinante. O ponto alto é a igreja, que toma boa parte do local. O acesso é pelo Paraíso, nome dado ao salão de entrada por abrigar em suas paredes pinturas com a cena bíblica da queda do homem.
Outro espaço interessante é o chamado coro dos monges, datado do século 14. Em 92 lugares individuais, esculpidos em madeira em um ambiente separado do restante da igreja, os monges passavam seis ou sete horas por dia lá, de pé, rezando. Curiosamente, os espaços são pequenos e muito baixos. A explicação está na estatura média da época, muito mais baixa do que a atual. Hoje, é impossível um homem de altura média conseguir ficar de pé naquele lugar.
O mosteiro cisterciense encerrou suas atividades depois da Reforma Luterana, e o local passou a abrigar uma escola religiosa protestante. A instituição existe até hoje (sim, aquele lugar encantador é sala de aula de muitos estudantes), e tem entre seus ex-alunos famosos o físico Johannes Kepler e os escritores Friedrich Hölderlin e Hermann Hesse. O local é aberto ao público e ainda tem pequenos restaurantes e cafés, e muitos alemães aproveitam o agradável espaço para passeios em família. Além disso, diversos concertos são realizados lá, principalmente na igreja, que tem uma acústica espetacular.
O tour pelos prédios é pago e pode ser feito com guias presenciais ou de áudio. Vale a pena investir em um guia, mesmo que seja o de áudio. Ainda que a beleza e a arquitetura do lugar já valham muito a visita, conhecer as histórias, e as curiosidades do cotidiano do mosteiro e da vida dos monges é uma grande experiência.
Clima universitário em Tübingen
O segundo dia do nosso roteiro foi todo dedicado a Tübingen, uma importante cidade universitária. Ela abriga a Eberhard Karls University, uma das mais antigas da Alemanha, importante espaço para a educação protestante que já teve nomes como Georg W. F. Hegel e Phillip Melanchthon como professores.
É impossível dissociar a instituição das ruas de Tübingen — mais de 28 mil dos seus 83 mil habitantes são universitários, e a vida estudantil marca o cotidiano por lá.
A cidade é apaixonante: escadarias íngremes, becos estreitos e casas de telhados inclinados formam a vista de cartão-postal. No centro, destaque para o lindo prédio da prefeitura, construído em 1435, ampliado em 1508 e ornamentado com um relógio astronômico em 1511, que funciona até hoje. Lojas, cafés, adegas (Tübingen é uma importante produtora de vinhos), bares, restaurantes e bistrôs estão espalhados pelas ruas e deixam o clima ainda mais agradável. Dá vontade de ficar.
Mas a imagem mais conhecida é a margem do Rio Neckar, costeado por simpáticas casinhas. A experiência mais bacana que tivemos por lá — e que, não por acaso, é uma das principais atrações da cidade — foi um passeio pelo rio a bordo de uma canoa, guiada por um universitário. Nosso almoço foi lá mesmo, no melhor estilo piquenique alemão: salsichas, linguiças, pães e sanduíches deliciosos e, claro, cerveja — armazenada em um cesto de vime, em temperatura ambiente mesmo, muito leve e saborosa. Imperdível!
Com tantos universitários, Tübingen também respira cultura e é sede de diversos museus, como o Tübinger Kunsthalle, conhecido internacionalmente, e o Museum der Universitat (MUT), o museu da universidade, que tivemos a oportunidade de visitar. Localizado no castelo de Tübingen, a instituição abriga uma exposição que reúne as mais antigas obras de arte que se tem notícia em todo o mundo: pequenas peças, com mais ou menos cinco centímetros, esculpidas em marfim de mamutes que representam figuras da era do gelo e produzidas há cerca de 40 mil anos.
Se ainda sobrar um tempo na sua agenda de turista, há mais para ver. No distrito de Bebehausen, é possível visitar outro mosteiro medieval tão bem preservado quanto o de Maulbronn. Fundado entre 1180 e 1183, o local abrigou os monges até 1648. Mais tarde, parte do complexo passou a pertencer ao Estado alemão e serviu como palácio de caça real, sendo um dos lugares favoritos dos monarcas. Mais uma vez, a visita guiada é fundamental para entender a história do lugar (não abra mão dela).
Uma dica: os mosteiros de Maulbronn e Bebenhausen são muito semelhantes, com arquiteturas no mesmo estilo. Se você não for um grande entusiasta de mosteiros, escolha um deles. Para mim, o mais interessante foi o de Maulbronn, que fica em um espaço maior e proporciona uma experiência mais completa.
Embrião da Reforma em Konstanz
Konstanz, ou Constança, foi o último destino do nosso roteiro. Já na fronteira com a Suíça, a cidade se concentra ao redor do lago que dá nome ao lugar. É um local importante na história da Reforma Luterana, pois foi lá que o embrião da revolução começou a se formar.
Entre os anos 1414 e 1418, realizou-se o Concílio de Constança, que reuniu autoridades eclesiásticas de toda a Europa e pretendia consolidar um reforma na Igreja Católica que, na época, tinha três papas — e, consequentemente, muitas divergências internas. Entre os convidados estava Jan Hus, professor da Universidade de Praga e crítico reformista, que passou a pregar na cidade secretamente suas ideias reformadoras, que só foram tomar o mundo cem anos depois. Hus acabou condenado à morte por heresia.
O concílio ocorreu em um prédio à beira do lago, que hoje abriga um restaurante — como bem destacou nosso divertido guia, é o único lugar no mundo em que você pode dar uma festa onde foi escolhido um Papa.
O porto é o coração da cidade, com uma intensa movimentação de navios e um agradável espaço para passear e refrescar os pés na água — faz muito calor por lá no verão, e os alemães aproveitam para curtir o sol depois do rigoroso inverno. E ainda dá para ver, bem ao longe, os lindos alpes suíços. Feiras de artesanato, bistrôs, cafés e muitas lojas fazem do centro de Constança um lugar que vale muito a visita. Os suíços que o digam: muitos aproveitam a proximidade e cruzam a fronteira para fazer compras, já que os preços no lado alemão são bem mais amigáveis.
A catedral é outra atração. Sabe-se que foi erguida até o século 7 nas ruínas de um forte romano e sofreu diversas modificações ao longo do tempo, especialmente após a Reforma Luterana. Além do imponente altar, das esculturas e do órgão de tubos que podem ser vistos lá dentro, nossa visita teve mais um privilégio: tivemos acesso ao interior do prédio, o seu "esqueleto", onde pudemos ver as enormes estruturas de madeira que ajudaram a erguer e manter o local. Não deixe de subir até o seu topo. A vista é imperdível.
Imperia
Conta-se que mais de 72 mil pessoas foram a Konstanz para o histórico concílio — entre elas, 3 mil prostitutas. A presença dessas mulheres, mais especificamente de Imperia, uma italiana, foi a inspiração para a criação de uma estátua de nove metros que fica próxima ao porto. A obra, inaugurada em 1993, é polêmica: em uma mão, Imperia carrega a figura de um homem com a coroa imperial; na outra, uma figura masculina usa a tiara papal.
Cândida Hansen é editora do caderno Vida e viajou para a Alemanha a convite do DZT — Centro de Turismo Alemão