– Pessoas, vocês só digam "skooozy" e vão passando – instruiu uma jovem norte-americana aos amigos quando o grupo ficou preso no amontoado de turistas que entope as ruas estreitas de Veneza, tranca suas gloriosas praças e força os moradores desse encantador centro flutuante a sair para terra firme. – Não temos tempo!
E o governo italiano teme que a cidade também não tenha.
Não olhe agora, mas essa que já foi uma grande potência mercantil e marítima está arriscada a ser conquistada pelos "excursionistas".
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A trilha sonora local agora é o ruído produzido pelas rodinhas das malas dos visitantes batendo contra os degraus das passarelas, enquanto hordas de turistas marcham pelos canais. Trechos de conversas no dialeto veneziano ainda podem ser ouvidos entre os gondoleiros que levam casais mais preocupados em tirar selfies, mas a língua franca é uma salada de inglês, chinês e qualquer outro idioma predominante nos megacruzeiros ou nos voos de baixo custo, cujos passageiros são despejados no centro pela manhã. Várias casas foram substituídas por hotéis.
As autoridades italianas, lamentando o que chamam de "turismo de baixa qualidade", estão pensando em limitar o número de pessoas que entram na cidade e/ou suas piazzas clássicas.
– Se a pessoa chega de navio, sai, vai ter de duas a três horas para seguir alguém segurando uma bandeira para Piazzale Roma, Ponte di Rialto e San Marco e pronto, dar meia volta – diz o ministro da Cultura italiano, Dario Franceschini, que lamenta o fato de o turismo "Comer e Correr", como ele chama, tenha feito a cidade decair tanto. – A beleza das cidades italianas não está só na arquitetura, mas na atividade do lugar, nas lojas, as oficinas. Precisamos preservar essa identidade – acrescenta.
Os moradores, ou o que restou deles, sentem-se literalmente invadidos pelos aproximadamente 20 milhões de turistas que chegam todo ano. As lojas já colocaram placas nas vitrines, mostrando como chegar dali à Praça de São Marco ou à Ponte di Rialto, só para as pessoas pararem de entrar para pedir informações.
O principal foco da ansiedade está nos cruzeiros gigantescos que passam pelo Grande Canal, encobrindo os pontos mais famosos como um eclipse que bloqueia o sol.
Parte dos cerca de 50 mil venezianos que permanecem na cidade – em 1951, eram 175 mil – se organizaram em associações contra os "Grandes Navios", vendendo camisetas que mostram as embarcações com dentes de tubarão, ameaçando os pescadores. Em junho, quase todos os 18 mil que votaram no referendo não oficial queriam que os cruzeiros saíssem da lagoa.
– Os navios são um dos problemas – diz Franceschini, que se refere à passagem deles em frente à Praça São Marco de "espetáculo inaceitável".
Acontece que eles trazem dinheiro e, uma vez que Veneza já não é mais a potência comercial de outrora, precisa de todos os euros que puder atrair. E os transatlânticos não só deixam recursos na cidade, mas também criam empregos em toda a cadeia de suprimentos, beneficiando mecânicos, garçons e taxistas. Os gondoleiros que colocam suas camisas listradas e protetor solar na careca toda manhã têm trabalho constante.
Os turistas que preferem levar um suvenir para casa – máscaras, miniaturas de gôndolas, tigelas ou contas imitando o vidro de Murano, bonés de marinheiro listrados onde se lê "Venezia", camisas de vários times de futebol, aventais com desenhos da São Marco e bolsas das grandes grifes italianas – têm sorte, mas está cada vez mais difícil deparar com uma boutique local de um jovem empreendedor, pois os mais jovens estão indo embora.
– Está cada vez mais difícil viver aqui – admite Bruno Ravagnan, 33 anos, ao tomar o ônibus aquático lotado de turistas com suas malas.
A maioria dos venezianos mora na região de Castello, longe da Praça São Marco o suficiente para dar a ilusão de que se pode levar uma vida normal – mas é só ilusão mesmo.
– Se você quer comprar prosciutto não pode porque a salumeria fechou – queixa-se Tommaso Mingati, 41 anos.
Sua família mantém um pequeno apartamento aqui, mas, como a maior parte dos antigos residentes, mudou-se para Mestre, o trecho continental a que ninguém jamais se referiu como a "Rainha do Adriático". Sua mãe lamenta o fato de a cidade ter se transformado na "Disneylândia do Mar" e, para piorar, o império de pousadas tipo bed & breakfast, em franca expansão, agora está forçando o pessoal a sair de Mestre também.
Todos esses alojamentos, mais os 2,5 mil hotéis da cidade, têm um sem-número de toalhas e lençóis que precisam ser lavados constantemente, mas Veneza já não tem mais capacidade para dar conta da tarefa. Por isso, de manhãzinha, os barcos levam a roupa suja e o lixo para Tronchetto, uma ilha artificial/estacionamento para os veículos que chegam do continente.
Em troca, pegam toalhas e roupa de cama limpas, mas também um sem-fim de garrafas de água mineral, alimentos e todo o tipo de item consumido nos limites da lagoa.
Um fim de semana por ano, em julho, durante a Festa do Redentor, os venezianos tomam a cidade de volta, saindo de Mestre para beber vinho às margens do Grande Canal enquanto esperam o espetáculo de fogos de artifício.
Este ano, a comemoração coincidiu com a Bienal, que atrai milhares de visitantes viajados e sofisticados à cidade para conferir o que há de novo nas artes, dança e teatro; assim, a população em geral e os fãs de arte desenvolveram meio que uma aliança contra a multidão que invade a praça.
– Este evento é um modelo daquilo que a cidade poderia ser – diz Paolo Baratta, presidente da Bienal, admirando os fogos da varanda da sede do festival.
Segundo ele, os turistas que chegam de navio não estão preocupados com o que acontece em Veneza. À noite, a maioria volta para os cruzeiros ou vai jantar cedo – e o resultado é um respiro momentâneo.
Essas horas mágicas vão até o comecinho da manhã, antes de os visitantes voltarem, quando a própria Praça São Marco está vazia, com exceção dos pombos e daqueles que começam o trabalho mais cedo.
Esse período, com as sombras ainda longas e a luz refletindo na lagoa e nas janelas das arcadas, me lembram do que Raffaelle Nocera – que, de maneira geral, anda bem deprimido em relação ao estado de sua cidade –, me disse enquanto navegávamos no ônibus aquático ao redor do Grande Canal.
– Se acordar bem cedo, tem Veneza inteira só para você – ensina.
E o que se vê deixa bem claro por que vale tanto a pena protegê-la e por que os italianos resolveram se manifestar.
– Hoje é a Praça São Marco e a Ponte di Rialto; amanhã, vai saber, esse problema pode se espalhar e tomar a cidade inteira – conclui, pessimista.
Por Jason Horowitz