Há pelo menos um ano não andava de bicicleta. A última experiência havia sido um passeio de bike pelo Vale dos Vinhedos, quando, nos primeiros 200 metros, troquei a normal por uma elétrica porque não consegui enfrentar as subidas em chão batido.
Quando veio o convite para passar uma semana pedalando pelo Alentejo, fiquei dividida. Metade do meu coração já estava lá. Vendo as paisagens portuguesas, com certeza, cheias de lugares bucólicos e idílicos. Visitando vinícolas, comendo em restaurantes incríveis e descobrindo olarias e pequenos vilarejos. O outro lado pensava: "Meu Deus, e se cansarem da minha falta de preparo, me deixarem no meio do caminho, de bofes para fora e querendo voltar para o Brasil?".
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A sorte é que meus medos são muito menores do que minha curiosidade. Fui, com a cara, a coragem e o peito aberto. E foi a cara e o corpo que me agradeceram: não tenho como explicar a sensação de cruzar os campos dourados de sol do centro-sul de Portugal com o vento batendo no rosto. Me misturando ao ambiente. Totalmente diferente de estar em um carro ou até em um ônibus. Não olhava a paisagem pela janela. Eu era parte dela.
E aí começo a contar para vocês uma experiência que, mais de um mês depois, ainda está tão viva que sinto cheiros e sabores só de olhar para as fotos.
Primeiro explico que há um grupo – o Bike Tours Portugal – que dá todo o suporte. A empresa parece grande pelo serviço que fornece, mas os dois donos têm papel principal no serviço – André Martins é chef e prepara o almoço, dirigindo a van e o trailer que são cozinha, banheiro e apoio, enquanto Ricardo González faz todo o trabalho de logística dos passageiros. Além deles, outras quatro pessoas trabalham na divulgação e na organização dos passeios. É impressionante o que conseguem fazer com seis pessoas.
No início da aventura, eles já avisam que o turismo é diferente. O guia José Carlos e o chef André são ciclistas apaixonados, que a cada dia podem mudar o trecho porque descobriram, no tour anterior, um caminho mais interessante ou uma atração diferente.
Todas as manhãs, o pedal começava pelas 9h. O primeiro intervalo era às 13h, quando André nos esperava com um almoço em algum lugar onde parava o trailer e montava a mesa e as cadeiras de madeira. Após a refeição, um pequeno descanso para curtir a paisagem e começar a digestão, e voltávamos ao pedal. Visitávamos vinícolas, pontos turísticos ou olarias.
Pelo meio da tarde, chegávamos ao hotel. E esses hotéis eram uma atração à parte: o luxo, se é que se pode chamar assim, eram a história e os detalhes. Antigas herdades (fazendas), conventos que foram transformados em hotéis e vinícolas onde as construções estão integradas às vinhas.
MONTEMOR-O-NOVO
O primeiro pedal foi tranquilo – 25 quilômetros pela região para testar a relação de cada participante com a bicicleta. O casal que me acompanhou era superbiker. Por isso, a minha magrela foi trocada por uma com pedal assistido – diferentemente das bicicletas elétricas mais conhecidas, essa reforçava a minha força e trabalhava comigo. Não anda sozinha – é preciso pedalar bastante.
Parte do Alentejo Central, Montemor tem pouco mais de 12 mil habitantes. O principal atrativo é o Castelo de Montemor-o-Novo, que se avista em cima do principal cume da cidade. Documentos confirmam que foi dali que Vasco da Gama completou seus planos da viagem à Índia.
Aí já começamos a ver a paisagem típica do Alentejo. A primeira parada foi em um hotel que fica dentro de uma vinícola, a L'AND Vineyards. O projeto é do arquiteto paulista Marcio Kogan, famoso por obras no Brasil e em vários países das Américas, da Europa e da Ásia.
As suítes são do tamanho de pequenos apartamentos, todas com vista para as vinhas. No hotel, fica o restaurante do chef Miguel Laffan, que já teve uma estrela Michelin em 2014, mas a perdeu em 2016. Laffan define a perda como uma oportunidade de "abrir os olhos". A fama da estrela afastou o chef, que tocou inúmeros outros projetos (no Mercado da Ribera, em Lisboa, um estabelecimento tem a sua assinatura, servindo pratos à base de frango).
Pergunte se o chef está na casa. Os pratos têm outro nível quando ele está na cozinha. Sugestão: Tom yen kung com ostras do Sado (uma sopa tailandesa tão saborosa que, mesmo sendo entrada, eu comeria apenas isso como refeição).
ÉVORA
No segundo dia, foram 48 quilômetros pedalando – a maior parte em descida, mas com algumas subidas mais exigentes. Foi o único trecho que nos deixou por mais tempo em rodovia. Ainda assim, a educação dos motoristas em relação aos ciclistas é surpreendente e me fez sonhar com algo assim no Brasil.
Antes de entrarmos em Évora, cidade Patrimônio da Humanidade, fomos até a Adega Cartuxa, que produz um dos mais famosos vinhos portugueses: o tinto Pera Manca. Se você não quiser investir quase 300 euros em uma garrafa desse rótulo, minha dica é levar para casa uma de azeite de oliva.
No Alentejo Central, Évora é a única portuguesa a integrar a Rede de Cidades Europeias Mais Antigas. Foi fundada oficialmente em 1166, mas sua história se mistura com a colonização romana, com a dominação muçulmana e também com a colonização da América – para os cofres de Évora, foram levados os tesouros retirados do Brasil.
É possível conhecer a cidade entre muros e seus pontos centrais em uma tarde. O Templo Romano impressiona, mas não tanto quanto a Capela dos Ossos, construída por monges no século 18, com as paredes forradas com ossos humanos. Na entrada, a célebre frase? "Nós ossos que aqui estamos, por vós esperamos".
A dica, se você tiver pouco tempo, é pegar um tuk-tuk (triciclo) por uma hora para conhecer rapidamente os principais pontos turísticos. A partir daí, escolha onde voltar a pé e ficar mais tempo. Mas não deixe de curtir o final de tarde na Praça do Giraldo.
A hospedagem foi no M'Ar de Ar Aqueduto, hotel boutique que agregou o antigo Palácio de Sepúlveda, um edifício quinhentista com vista para o antigo aqueduto romano.
MONSARAZ
No terceiro dia, fizemos a pedalada mais longa: quase 62 quilômetros. O Castelo de Monsaraz é um dos lugares mais lindos que já vi e vale todo o caminho íngreme para chegar até lá em cima. É uma cidade murada, pitoresca, com cafés e ruas estreitas que parecem ter parado no tempo.
Na região, passamos pela Olaria Patalim, na vila de São Pedro do Corval. O oleiro segue a profissão que vem desde o tataravô. Quando perguntei se o filho seguiria o mesmo caminho, ele, enquanto dava forma a mais uma peça de barro, me respondeu, sorrindo:
– Não. Ele quer ser youtuber.
Os preços das louças são convidativos, e levamos uma carga que teve de ser buscada, mais tarde, pelo André na sua van.
Talvez, o lugar mais incrível da viagem tenha sido a Herdade de São Lourenço do Barrocal, fazenda que está com a mesma família há mais de 200 anos. Era quase uma aldeia onde viviam mais de 50 famílias, que só iam uma vez por ano à cidade mais próxima, Reguengos. Todo o resto era suprido dentro da herdade.
Com o golpe militar português, em 1974, a fazenda foi nacionalizada. Na década de 1990, a família recuperou o local, e no início dos anos 2000 o recriam como um hotel para evitar a falência da propriedade. Hoje, a fazenda produz gado, azeitonas e vinho e, ao mesmo tempo, funciona como hotel de luxo, porém despretensioso. Mas não se engane: todos os detalhes, mesmo que pareçam singelos, são muito bem pensados.
Os quartos são as antigas casas dos funcionários com originais ou restaurações perfeitas de portas, janelas, chão e fechaduras. Não dá vontade de ir embora. E quando vamos, temos a certeza de voltar um dia.
PEDRÓGÃO – HERDADE DO SOBROSO
Já no Baixo Alentejo, o caminho nos leva pelas margens do Alqueva, maior barragem portuguesa e maior reservatório artificial de água da Europa. A viagem de bicicleta é por dentro de vilarejos e fazendas com servidões (autorizações de passagem). Sem esperar, de repente estamos dentro de uma cidade – essas surpresas aparecem por todo o roteiro.
Sempre que possível, parávamos para um café em lugares pequenos, com três mesas e sempre um alentejano simpático, já passando de seus 60 anos, contando uma história ou compartilhando sabedoria. A vida corre mais lenta e feliz nas pequenas cidades do Alentejo.
E foi assim que chegamos, depois de 49 quilômetros de pedal, à vinícola onde nos hospedaríamos aquela noite: a Herdade do Sobroso Wine& Country House. Para mim, a vinícola com os melhores vinhos da viagem.
Os quartos são menos luxuosos, mas a paisagem enche os olhos, e o atendimento, o coração. Chegamos em meio à vindima na Europa, e, enquanto chegavam as caixas de uva alicante bouchet recém colhida, eu me encantava devorando as frutas e acompanhando os primeiros passos do processo do vinho.
Um casal comanda essa herdade – ele é o enólogo, ela, a gerente da pousada. Seus vinhos tiveram destaque no último Concurso Internacional de Bruxelas. Mesmo assim, a simplicidade e a simpatia são uma constante. No jantar, escolha uma açorda, espécie de sopa em que os ingredientes frescos ou pré-cozidos são cobertos por água em ebulição – as do Sobroso são famosas em todo Portugal. Para acompanhar? Um vinho da própria vinícola, sem qualquer dúvida!
BEJA
De Pedrógão, seguimos para Beja, distante 45 quilômetros. Como outros lugares no Alentejo, Beja também passou por vários povos. Desde a fundação, creditada aos celtas, em 400 a.C., passou por romanos, visigodos e árabes.
Cheguei ao hotel, um convento adaptado pelo grupo Pestana, troquei de roupa e logo saí para conhecer a cidade, que tem dimensões médias, com lojas, farmácias e supermercados.
A dica é caminhar até o Castelo de Beja, que conta com uma torre de vigia, considerada um dos mais belos exemplos de arquitetura militar da Idade Média. É possível subir até o ponto mais alto da construção. Se você tem medo de altura ou claustrofobia, vá com cuidado – as escadas são estreitas e íngremes.
Ah, as oliveiras!
Pedalar pelo Alentejo é ver milhares e milhares de oliveiras. O azeite de oliva português é famoso e saboroso, especialmente desta região, que também é uma dos maiores produtoras mundiais de cortiça, retirada da casca de uma árvore chamada sobreiro. A primeira vez que se tira a cortiça é quando a árvore já tem entre 25 e 30 anos. O processo só pode ser feito a cada nove anos.
ALBERNOA
Com o final da viagem chegando, os trechos também encurtavam. Foram 43 quilômetros para chegar à Herdade da Malhadinha Nova, em Albernoa, no Baixo Alentejo. Esse é outro lugar que vale a visita por si só – é tão bacana e diferente que muita gente de Lisboa vai para lá passar o final de semana ou os feriados prolongados. A herdade (sim, mais uma fazenda) é uma mistura de pousada com hotel cinco estrelas, reunindo alta gastronomia e vinícola.
O lugar estava praticamente abandonado – e essa situação se repete por várias regiões do interior de Portugal, que aos poucos vêm sendo salvas pelo turismo –, até ser comprado pela família Soares, em 1998. A intenção foi cumprida à risca: produção de vinhos de alta qualidade e criação de animais de raças locais, tudo de forma sustentável e com produtos genuinamente alentejanos.
Hoje, a Malhadinha é conhecida também pela gastronomia – não só do restaurante, mas o café da manhã típico é um dos mais famosos de Portugal. Pães alentejanos preparados na hora, vários tipos de queijos e embutidos portugueses, pratos quentes, sucos e doces completam o menu, que pode ser degustado junto à piscina, admirando a imensidão dos vinhedos. A propriedade é também cenário para o último pedal. Desta vez, leves 15 quilômetros desbravando trilhas e terminando no próprio vinhedo da vinícola, onde o chef André nos esperava para um último almoço sob as árvores.
Foi lá também que tive uma aula de preparo de pão alentejano com o chef Bruno Antunes, com direito a rechear com linguiça de porco preto e tudo. No jantar, tivemos a oportunidade de degustar nossa produção. Sugestão no jantar da Malhadinha: o porco preto ou qualquer prato que leve cordeiro. Você não vai se arrepender! Para acompanhar, fique com os vinhos locais. Quem sabe, prove o Touriga Nacional da Peceguinha e compare as diferenças de terroir com o produzido no Brasil.
E chegou a hora de dar adeus ao Alentejo. Prepare-se: você sai do Alentejo, mas leva suas marcas. Foi pouco mais de uma semana, mas pareceu um mês. Acho que o tempo passa mais lentamente por lá.
Mudanças à vista
Este foi o último tour nesse formato da Bike Tours Portugal. A partir de 2017, os passeios serão mais curtos, com menores distâncias em pedal, para evitar que se troque de hotel todos os dias. Mais informações em biketoursportugal.com.
*Sara Bodowsky é comunicadora da Rádio Gaúcha e editora do blog Roteiro da Sara. Viajou a convite da Porto Brasil Viagens, que opera os grupos da Bike Tours Portugal em Porto Alegre