Civita di Bagnoregio
Foto: Nadia Shira Cohen, NYTNS Vilarejo foi um dos cenários de "Esperança", novela que a Globo exibiu em 2002
Foto: Nadia Shira Cohen, NYTNS
Perdoem Sandro Rocchi se ele parece feliz da vida ao degustar um copo de vinho tinto ao meio-dia, no restaurante dos filhos, saboreando o prazer de ver a revitalização inesperada desse magnífico vilarejo nas montanhas italianas. É que ele teve que ir embora, nos anos 1970, por falta de perspectivas. Hoje, há lojas, restaurantes, hotéis boutique e muitos turistas.
- Esse lugar ganhou vida nova - diz Rochi.
Só que há um pequeno problema. Civita di Bagnoregio, que foi um dos cenários da novela Esperança (Globo, 2002), está entrando em colapso, lenta e gradualmente, há séculos.
Leia mais:
Assis, na Itália, recebe visitantes não católicos à procura da "essência mística" do lugar
Conheça ferramentas que ajudam a comprar passagens mais baratas
Itália: leitores destacam os lugares mais legais para se visitar
Nápoles, uma sedutora cidade de luz e trevas na Itália
Os deslizamentos vêm corroendo os penhascos, chegando a arrancar um pedaço da antiga residência de pedra de seu morador mais famoso, Giovanni di Fidanza, o teólogo medieval canonizado como São Boaventura. Durante anos, essa guerra perdida contra o atrito geológico não teve importância porque poucas pessoas viviam em Civita e quase ninguém a visitava.
LOCAL RECEBE 500 MIL PESSOAS AO ANO
A população permanente continua minúscula - talvez seis pessoas, quem sabe oito - mas Civita, a cerca de 120 quilômetros ao norte de Roma, na região central da Itália, já virou um dínamo turístico, com mais 500 mil visitantes ao ano. É candidata a se tornar o novo Patrimônio da Humanidade pela Unesco e destaque da campanha regional de turismo que aparece até nos ônibus de Roma. Em suma, é uma maravilha unânime.
Só que continua desmoronando, ainda que muito lentamente. Em maio passado, uma encosta cedeu perto da rua de mão única que dá na passarela que leva à aldeia. A via continua estável porque os operários estão trabalhando na região; os turistas não parecem ter notado. Um geólogo local calcula que Civita sofreu 10 deslizamentos no último ano; alguns insignificantes, outros mais danosos.
- A chuva é o principal problema. A água se infiltra nas rachaduras da pedra vulcânica e cria alterações. Nos últimos 500 anos houve uma redução de cerca de 20% nos penhascos - explica Giovanni Maria Di Buduo, responsável pelo museu local dedicado à geologia de Civita e da região à sua volta.
UMA HISTÓRIA DE DESASTRES
Dado o recente movimento turístico, além da importância histórica e cultural do vilarejo - que foi erigido originalmente pelos etruscos -, o governo de Lazio já começou a se movimentar. Uma das possibilidades é a pressão por uma lei nacional que garanta um status especial e incentivos para Civita. Além disso, as autoridades dizem que vão fazer um plano de 10 anos com base holista para reforçar e proteger o vilarejo, ao contrário das iniciativas passadas.
- Percebemos que os investimentos anteriores foram pouco consistentes e, por isso, pouco eficientes - admite Fabio Refrigeri, membro do governo de Lazio.
Os etruscos construíram Civita há mais de 2.500 anos, um dos inúmeros vilarejos elevados e fortificados para se protegerem contra os invasores que vinham dos vales lá embaixo - mas os séculos se passaram e os conflitos mudaram, acabando com a vantagem estratégica da aldeia, que passou a se tornar cada vez mais isolada.
Um terremoto, no século 17, também não ajudou. O governo local foi levado para o que passou a ser o subúrbio adjacente de Bagnoregio, que ainda hoje cuida de Civita.
Aí, a erosão agravou o problema. Os deslizamentos transformaram o vilarejo em uma ilha compacta depois que a ponte de terra que ligava Civita a Bagnoregio foi se deteriorando gradualmente (mais tarde substituída por uma passarela de aço e concreto, ainda usada hoje). Os mapas do museu geológico registram o encolhimento implacável de Civita, causado pela erosão que vem roendo seu tufo vulcânico esbranquiçado.
- Isso foi do deslizamento de novembro passado. Se olhar as fotos vai ver que essas áreas mudaram por causa do solo frágil - conta Luca Profili, o vice-prefeito de Bagnoregio, apontando para os escombros no sopé de uma falésia.
À distância, a paisagem que cerca Civita é uma mistura de vales verdejantes divididos por encostas de solo branco e poroso.
FRAGILIDADE FAZ DO VILAREJO UM LOCAL ÚNICO
Não muito tempo atrás, o declínio parecia inevitável, o que talvez explique o apelido de Civita: "Il Paese Che Muore", ou "A Cidade Que Está Morrendo". Só que não foi o que aconteceu, muito pelo contrário: o papa Bento XVI visitou sua catedral, em 2009, para homenagear São
Boaventura e o gabinete de turismo de Lazio promoveu Civita em campanhas publicitárias nacionais. A imprensa explorou o vilarejo medieval intocado no topo de um despenhadeiro lutando contra a erosão. Irresistível e maravilhosamente pitoresco.
- A fragilidade de Civita é ruim, mas é também o que faz dela um local único. É aquela ideia de que é preciso desfrutá-la hoje porque não sabemos se existirá amanhã - diz o vice-prefeito.
Agora os restaurantes e lojas de presentes recebem as hordas de visitantes. Diversos edifícios de pedra forma transformados em pousadas tipo bed & breakfast. Corridas de burricos são realizadas na praça principal duas vezes por ano. Na Sexta-Feira Santa, o crucifixo imenso da catedral é levado em procissão a Bagnoregio - mas sempre devolvido porque, segundo a lenda, Civita será destruída se a cruz não voltar até a meia-noite do Sábado de Aleluia.
Arianna Bastoni, dona da Cantina di Arianna, restaurante na esquina da praça do vilarejo, vive quase o ano todo no apartamento que fica no andar superior - e se encontra muito mais ocupada hoje em dia, pois, ao lado da família, atende ao fluxo de turistas que enche Civita durante o dia. À noite, no entanto, com exceção dos hóspedes das pousadas e dos moradores permanentes, tudo fica vazio por lá.
- É bem tranquilo. Às sete da noite o pessoal começa a ir embora e aí o silêncio se torna incrível - conta Arianna.
Para Sandro Rocchi, 70 anos, a revitalização de Civita é um prazer inesperado - afinal várias gerações da família viveram ali até o desespero bater.
- Entre a década de 60 e 70, não se encontrava emprego por aqui. Aí todo mundo foi embora - relembra o morador.
Agora seus filhos, Maurizio e Alessandra, comandam um restaurante popular, o Alma Civita. Rocchi passa as manhãs nas encostas próximas, caçando trufas, antes de aparecer para comer.
- Eu trago trufas, eles me preparam o almoço - brinca o italiano.
Nada mal para um vilarejo que, no fim das contas, talvez nem desapareça.