Das viagens em geral, esperamos muita diversão, novos conhecimentos, sabores distintos e relaxar, entre outras coisas boas. Entretanto, algumas delas também têm o poder de mexer com as nossas crenças, com a nossa visão de mundo, e acabam influenciando o nosso futuro. Essas viagens nos transformam. Foi o que aconteceu comigo e mais cinco amigos de Florianópolis: José Luiz, Valdir, Tadeu, Cenoer e Luiz. Acostumados a caminhadas de longa distância pelo Brasil e pelo Exterior, regressamos reflexivos do Nepal, onde percorremos por 15 dias as trilhas íngremes das montanhas do Himalaia, em direção ao campo-base do Everest. Desta vez, foram muitas viagens na mesma viagem.
Por conta dos sentimentos que a experiência despertou, a "ficha demorou a cair" na volta para casa. O Nepal nos assombrou pelo excesso e pela escassez. Pela grandiosidade de suas montanhas e pela exuberância de seus vales, rios e florestas. Pelas precárias condições de vida de seu admirável povo, que enfrenta serenamente a falta de saneamento básico, de abastecimento de água e energia e de transporte, entre outros problemas. Pelas dificuldades que passamos decorrentes da baixa concentração de oxigênio no ar em altitudes superiores a 4 mil metros, clima severo e esforço físico para vencer os 10 mil metros de aclives e declives.
Um terço do Nepal é ocupado pela cordilheira do Himalaia, a mais alta cadeia montanhosa do planeta, que abrange ainda China, Índia, Butão e Paquistão, em 2,5 mil quilômetros de extensão. Das 14 montanhas com mais de 8 mil metros existentes no mundo, oito estão em seu território. A principal delas, o Everest, com 8.850 metros de altitude, é a responsável pelo crescimento da indústria do turismo no país, o 14º mais pobre do mundo. A agricultura, principalmente do arroz, feita no sistema de terraços, ainda é sua maior fonte de receita e emprego.
(Ronaldo de Souza/Arquivo Pessoal) Em Catmandu, macacos dividem espaço com nepaleses
De pequenas dimensões (147 mil quilômetros quadrados de área), o Nepal nos impressionou o tempo todo. São 12 etnias convivendo em harmonia em um país com uma das maiores densidades demográficas do continente asiático: 184 habitantes por quilômetro quadrado. A profunda religiosidade do povo - 82% da população é hinduísta e 12%, budista - explica o que, para nós, ocidentais, parece milagre. A crença no carma e na reencarnação norteia a vida dos nepaleses.
Na capital, Kathmandu, cerca de 1 milhão de pessoas compartilham um sistema de transporte arcaico, trânsito caótico, iluminação pública deficiente, poluição atmosférica e sonora sem qualquer manifestação de violência urbana. Surpreso, o grupo dos "catarinas", como fomos apelidados por lá, pôde caminhar pelas ruas da cidade, visitar templos e monumentos, dia e noite, sem sofrer qualquer ameaça ou constrangimento.
Mergulho no exótico
Imersos no "caos organizado", conhecemos a Durbar Square, praça do antigo palácio real, o templo Pashupatinath, mais importante local hindu do país, o templo Boudnath, maior do gênero budista local, e Bhaktapur, cidade que conserva o estilo medieval, a 20 quilômetros da capital.
Até esse momento, éramos apenas turistas. A expedição ao campo-base do Everest revelou outro Nepal (no qual never end peace and love, brincam os sherpas, uma das etnias do país) para o nosso grupo. De Kathmandu a Lukla, a 2.860 metros de altitude, ponto de partida para o trekking de 15 dias, vivemos fortes emoções.
Voamos cerca de 45 minutos em pequeno avião bimotor, que serpenteou por entre montanhas para pousar em uma minúscula pista, de apenas 500 metros de comprimento e inclinada ao abismo. A partir daí, mergulhamos em um universo exótico. Iniciamos uma dura caminhada de 120 quilômetros, tivemos contato mais próximo com habitantes da região rural e fomos brindados com paisagens fantásticas.
Com o suporte em tempo integral do guia Manoel Morgado, entramos na "morada dos deuses", como os nativos chamam a região do Parque Nacional Sagarmatha, nome nepalês do Monte Everest. No monastério budista de Pangboche, recebemos a bênção do Lama Geishe, em cerimônia a que recorrem escaladores e sherpas antes de desafiar os 8.850 metros de altitude do Everest. Montanhas nevadas, como a Ama Dablan, paisagens coloridas pelas flores vermelhas do Rododendro, símbolo do Nepal, e as águas esverdeadas do Rio do Leite, no Vale do Khumbu, tornaram-se pano de fundo dos dias seguintes, fazendo-nos esquecer o cansaço e tudo o mais que pudesse causar preocupação.
(Ronaldo de Souza/Arquivo Pessoal) "Trekkeiros" passaram por vilarejos e interagiram com comunidades
Nossa expedição pernoitou em lodges rústicos, em vilarejos inóspitos, onde timidamente desponta a modernidade, como telefonia celular. Mas o transporte de itens nas trilhas pedregosas e estreitas ainda é medieval, feito por carregadores, que levam até 130 quilos, e yaks - bovinos de grande porte, adaptados a grandes altitudes.
País desconcertante
A interação com a população local foi, sem dúvida, uma das maiores fontes de aprendizado na jornada. Em passagem pelos vilarejos, fomos recebidos com cordialidade por adultos e crianças de bochechas vermelhas queimadas pelo frio. O significado do cumprimento Namastê, "o ser que habita meu coração saúda o ser que habita o seu coração", dá a medida da alma alegre do povo nepalês. Os sherpas, que atuam como assistentes dos guias nas expedições, são exemplo de determinação e comprometimento.
Embora o objetivo do trekking fosse o campo-base do Everest, a 5,3 mil metros de altitude, o clímax da viagem foi no topo do Kala Patthar (Pedra Negra, em nepali). A extenuante subida para alcançar o cume, a 5,5 mil metros de altitude, é recompensada pelo visual de Everest, Lhotse e Nuptse. Com o pôr do sol, a luz vai "apagando" as montanhas, deixando apenas o pico avermelhado do Everest aceso.
Chegamos ao campo-base, na divisa com o Tibete, após árdua caminhada pela lateral do glaciar do Vale do Khumbu. Ali, acampam por até dois meses escaladores e sherpas que se preparam para "atacar" o Everest. Para "trekkeiros" como nós, resta apreciar a estupenda Cascata de Gelo, formada pelo gelo que desce do topo do Everest - que vai abrindo fendas nos blocos e criando paredes que chegam a 40 metros -, e fazer o caminho de volta.
No retorno, fomos questionados sobre o porquê de ir ao Nepal diante de tantas dificuldades, a despeito das belezas naturais e da cordialidade do povo. Por que não ir aos Alpes Suíços? A resposta foi consensual: porque o Nepal é um país desconcertante.