A Estrada Real, usada no Brasil Colônia para escoar ouro e pedras preciosas de Minas Gerais para Portugal, é composta por paisagens indescritíveis e cidades antigas e acolhedoras, que esperaram os visitantes com pratos da cozinha mineira feitos no fogão a lenha. Duvida? Pergunte para o grupo de oito ciclistas, de diversas cidades, que pedalou por uma semana na Estrada Real, no trecho entre Diamantina e Ouro Preto, num passeio promovido pelo Instituto Estrada Real (IER) no mês de maio.
- Minha surpresa é que um caminho tão rico em paisagens, naturais e construídas, com um patrimônio imaterial vastíssimo, entre tantos outros aspectos destacáveis, seja ainda desconhecido da maioria dos cicloturistas - espanta-se Therbio Cezar, da Revista Bicicleta, que integrou a turma de aventureiros.
Formado por profissionais de turismo e jornalistas especializados em cicloturismo, o grupo partiu de Diamantina (a 292 km de Belo Horizonte) em direção a Serro, onde pernoitariam. Mas antes de chegar lá, os aventureiros passaram por São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde. Na primeira cidade, fez-se uma parada para almoço na Mercearia do Ademil, onde a cozinheira abateu na hora algumas galinhas para fazer um ensopado no fogão a lenha. Por R$ 16, comeu-se à vontade numa versão interiorana do self-service. E foi exatamente o que os ciclistas fizeram; famintos após vencer 33 km de subidas e descidas da estrada de terra que passa pela Serra do Espinhaço. O lugar fica em frente a uma bucólica praça onde estão a Matriz de São Gonçalo, erguida na segunda metade do século XVIII, e uma imensa e bela paineira. Depois disso, alguns ciclistas deitaram-se à sombra, na grama, para descansar, antes de encarar mais 30 km até o Serro. A ponte que corta o Rio Jequitinhonha, datada do século XVIII, e as cachoeiras do lugar também são visitas imperdíveis. Na região, o famoso Queijo do Serro, o primeiro bem registrado como patrimônio imaterial de Minas Gerais (2002), que também é considerado patrimônio imaterial do Brasil (2008).
No dia seguinte, logo cedo, todos estavam prontos para partir de Alvorada de Minas rumo a Itambé do Mato Dentro, onde dormiriam. Um percurso de 130 km onde pedalaram nos 3 km que cortam a MG-10. No trecho, foi necessário bastante cuidado, pois há movimentação intensa de caminhões. O grupo teve o apoio da equipe Nerea, treinada em resgate, durante todo o trajeto. Ao sair dessa parte da estrada, a paisagem torna-se novamente típica do interior mineiro. Depois de Itapanhoacanga, o grupo teve que encarar uma longa pirambeira debaixo de um sol inclemente. A recompensa foi o mirante que há no fim dela, com vista de 360 graus, de onde se avista a Serra do Caraça. Para chegar lá, porém, Horácio Júnior, carioca dono de uma agência de cicloturismo, aconselhou os menos preparados a empurrar as bikes a pé para poupar energia. Em Tapera, cidade que praticamente se resume a uma única rua no meio de um vale, os viajantes almoçaram no Centro Cultural Tapera Real. Os aventureiros encantaram-se com o feijão batido que os aguardava. Ao cair da noite, e depois de passarem por Conceição do Mato Dentro e Morro do Pilar, os ciclistas chegaram a Itambé do Mato Dentro, onde jantaram e dormiram. A cidade é conhecida por suas atrações naturais, como cachoeiras e corredeiras, ideais para o turismo de aventura.
Igreja do Rosário, na cidade de Cocais, por onde os ciclistas passaram. Crédito: Wladimir Togumi
O quarto dia amanheceu nublado com temperatura amena, ideal para pedalar. Depois de um farto café da manhã, a turma botou o pé na estrada para vencer a primeira ladeira de terra do percurso em direção ao Santuário do Caraça, onde se hospedariam. As paisagens naturais animaram o grupo a seguir na trilha, que totalizaria 40 km até o destino final do dia. Todo o percurso é muito bem sinalizado por totens de concreto, que indicam o caminho e trazem informações sobre os lugares por onde passa a Estrada Real. Um dos aspectos curiosos do passeio é observar a constante mudança na vegetação típica de cada lugar. Uma floresta formada por árvores frondosas pouco depois dá lugar a uma mata típica do cerrado. Neste trecho, o grupo atravessou uma floresta artificial de eucaliptos, bem mais bonita e interessante do lado de dentro do que observada do lado de fora.
O lobo vem para o jantar
A parte mais emocionante do dia, porém, iria acontecer mais tarde. Já instalados no Santuário do Caraça - fundado em 1774 para ser uma casa de hospedagem para acolher peregrinos e visitantes, é localizado no meio de uma reserva natural- os aventureiros puderam testemunhar a tradicional visita do lobo guará. Há muitos anos, os padres do lugar deixam à noite pedaços de carne num tabuleiro, em frente à igreja, para atrair os animais, que são fotografados pelos hóspedes. Desta vez, apareceram para o jantar dois exemplares da espécie.
- Foi isso que achei mais impressionante. O animal, em seu habitat natural, vem visitar o homem, come e vai embora. É fascinante - disse Gestennberger Reis, dono de uma loja de bicicletas e uma operadora de cicloturismo no Paraná.
As instalações do Santuário do Caraça são simples e confortáveis e o lugar tem um "clima" de mosteiro. Até porque seus 42 apartamentos e oito quartos com banheiros externos serviram por 150 anos para abrigar os seminaristas que ali estudavam. O café da manhã também é uma diversão à parte. Uma chapa, instalada em cima do fogão a lenha, serve para os hóspedes prepararem seu desjejum, com pães, frios e ovos. Antes de pegar a estrada, a dica é relaxar observando a névoa da manhã sobre a floresta que cerca o Santuário e a grande variedade de pássaros e orquídeas que tem ali o seu habitat natural.
Alimentada, a turma segue de van até Cocais, de onde parte de bicicleta para uma visita ao Sítio Arqueológico da Pedra Pintada, que pertence à mesma família há seis gerações. O ingresso custa R$ 5 e a visita é guiada por Bete, que dá informações sobre as pinturas rupestres impressas na parede da montanha há oito mil anos. Ela contou que esses registros foram feitos por tribos nômades que consideravam o local sagrado. Há muitos desenhos de animais e de membros dessa etnia, que deixaram com tinta marcas de sua história sobre as pedras. Bete faz também um aviso. Deve-se tomar cuidado com as agressivas abelhas africanas que vivem ali. Basta fazer silêncio para não provocá-las. Seguimos até Caeté, onde almoçamos no Santuário da Serra da Piedade, localizado a 1.751m, de onde se avistam, de cima, as montanhas da região. Visita obrigatória, mas leve casaco. De lá, seguimos para pernoitar em Santa Bárbara, cidade histórica do Circuito do Ouro de Minas.
Ciclistas em trilha numa floresta de eucaliptos entre as cidades de Cocais e Barão de Cocais. Crédito: Wladimir Togumi
A viagem chega ao fim
No penúltimo dia de viagem, partimos cedo de Santa Bárbara em direção a Ouro Preto, um percurso de 74 km de pedal. No caminho, uma parada para fotos no Bicame de Pedra, localizado a 12 km de Catas Altas. Trata-se das ruínas de um grande aqueduto construído no século XVIII para abastecer a lavagem do ouro extraído na região. Os ciclistas seguiram por uma bela trilha ladeada por vegetação de cerrado para Mariana, onde pararam para almoçar pratos típicos mineiros feitos no fogão a lenha, como frango com quiabo, linguiça, torresmo e feijão tropeiro. O restaurante, Rancho da Praça, fica na Praça Gomes Freire, cercada por árvores e casarões coloniais. Depois do almoço, os viajantes se prepararam para o último trecho sobre bicicletas, até Ouro Preto.
Partimos depois do almoço, e ganhamos a simpática escolta da Guarda Municipal até Ouro Preto. O trecho, quase todo em subida, fica mais difícil para quem que se entregou sem restrições aos prazeres da cozinha das Geraes. Nada impossível de superar, com algum esforço extra nas pedaladas. No trajeto, a casa onde a poetisa americana Elizabeth Bishop morou em Ouro Preto. Mais um pouco e os viajantes chegaram à Praça Tiradentes, local onde a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier, o mártir da independência, foi exposta. O grupo comemorou o sucesso da viagem numa simpática pizzaria da cidade.
- Foi possível observar que existe uma infraestrutura bem legal ao longo do Caminho dos Diamantes. E tem também a alegria das pessoas que interagiram conosco nos lugares, pois vi que elas acreditam nesse roteiro como fonte de recursos para sua cidade - analisou Amandina Morbeck, editora do site Viajando com Aman.