Aurora de França, 38 dias de vida, não é estreante na festa de Iemanjá em Cidreira, no Litoral Norte.
— Veio desde o ventre, junto com os outros orixás que trouxeram ela ao mundo — garante a mãe, a auxiliar de cozinha Caroline de França, 24 anos.
Em uma cadeira de rodas, o outro extremo da experiência: Dorieta Beck, 89 anos.
— A vovó queria ir caminhando, mas não deixamos - afirma Kivanna de Xangô, 51 anos, mãe de santo de Dorieta.
De um mês a quase 90 anos, as idades somaram-se à fé de centenas de peregrinos que acompanharam a imagem, na véspera do feriado em homenagem à Rainha do Mar, um dos tantos títulos da guerreira nas religiões de matriz africana. Os festejos de 2023 no município do Litoral Norte não tiveram restrições como nos demais anos de pandemia, um presente da ciência para a religião.
— Odoyá — gritou o funcionário público Thiago Sperb, 39 anos, logo que avistou a caminhada.
A divindade permaneceu doze horas sob vigília, das 8h as 20h desta quarta-feira (1). Em marcha, a procissão deixou a concha acústica do centro da cidade logo em seguida, num barco coberto por crisântemos, rosas brancas e hortênsias.
Crianças, algumas de colo, adultos e idosos percorreram cerca de três quilômetros até o Santuário Sincrético e Ecológico de Iemanjá, no Parque das Dunas (Avenida Mostardeiro, 4734, bairro Ildo Meneghetti), onde fica a maior estátua do Rio Grande do Sul em sua homenagem, com 8,3 metros de altura. Cânticos foram acompanhados de palmas no trajeto.
Uma longa fila de automóveis se formou atrás do grupo. Boa parte mantinha embarcações com as oferendes no porta-malas, e uma parcela dos fiéis a pé levou buquês e velas acesas em garrafas pet adaptadas como candelabros. Nas esquinas do comércio e nos portões de casa, o contingente crescia com novos adeptos.
Ajoelhada na calçada, a auxiliar de limpeza Luzane Marta da Silva Branco, 46 anos, demonstrava no sinal de mãos aos céus ter recebido uma benção, direcionada à mãe, de 91 anos:
— Minha mãe é filha de Iemanjá, teve dois AVC e superou tudo.
Às 22h, a imagem chegou ao santuário e foi aplaudida, iluminada por celulares erguidos pela multidão. No canteiro religioso, o público se misturou aos que já esperavam. A imponente estátua tinha o manto balançando sobre as oferendas: frutas, doces e tortas, bebidas, galhos e ramos. A canjica branca é cozida com açúcar, e servirá para alimentar pássaros e pombos, segundo a cartomante Maria Padilha, 25 anos.
Velas foram acesas nos círculos de concreto em tons azuis, como o que veste Iemanjá.
O mecânico Ari Junior, 57 anos, carregava flores em um barquinho azul. Pediu saúde e proteção.
No acesso do mar, uma sequência de placas anuncia que o caminho está certo: “Minha coroa é de conchas, minha mãe Iemanjá”, “Pés na areia e o coração no mar, salve Iemanjá”, “Foi nas ondas do mar que eu aprendi a confiar”.
Concentrada, como se conversasse com a chama, Angélica Oliveira Rodrigues, 47 anos, pedia zêlo dos filhos e netos. A autônoma acendeu três velas e guardou o trio restante para o momento derradeiro, já no 2 de fevereiro.
— Trabalho e saúde pra família - justifica os pedidos.
Fogueiras em buracos no piso, danças e orações silenciosas, os rituais se multiplicaram junto das ondas. Por toda orla, se ouvia a batida dos tambores, o badalo dos sinos acelerado e o vento que soprava com parcimônia.
A faixa de areia ficou tomada com a chegada da meia-noite.
— Vim agradecer porque eu queria, a vida inteira, comprar um terreno, e consegui - explicou Elisabete Kovalsky, 66 anos.
Tendas e lonas, além da presença de ambulância, guarda-vidas e brigadianos complementaram a estrutura. Um show com artistas locais também ocorreu no palco montado no parque do santuário. A organização foi da prefeitura de Cidreira.