À leste, figueiras e a ponta das dunas. No oeste, sítios, condomínios e os morros do Litoral Norte. Margeando a estrada, quebram o cenário construções de madeira ou em estilo semelhante, nascidas e comandadas, em boa parte, pela mesma família há décadas.
— Vai um chorinho aí? — oferece o garçom, já completando o copo com suco de abacaxi.
As tendas e fruteiras de praia oferecem aos veranistas serviços que demandariam muitas linhas para serem enumerados de forma completa: frutas da estação, artigos de churrasco, lanches, vasos de flor, anão de jardim e até bonecos que caíram de um ovni, em verde cintilante, são alguns deles. GZH percorreu as rodovias BR-101, RS-030, Estrada do Mar e o trecho litorâneo da Rota do Sol, e contabilizou 68 comércios desse tipo - média de um a cada três quilômetros.
Entre as histórias, há quem toque o negócio criado pelos pais, tendo criado laços com clientes que sempre voltam e resistido à pandemia - ou não, como revelam fachadas decadentes, de pintura apagada. Outros tiveram de trocar de ramo para seguir na resistência, conservando apenas o prédio da antiga tenda.
— Fui o primeiro da família a conseguir conforto. Mas começamos com uma lona, dormindo nos fundos. Nem ventilador tinha — lembra emocionado José Fernando Monteiro, o Pelé, 56 anos.
A Fruteira do Pelé (Estrada do Mar, km 86, Torres) está na lista dos pontos de parada mais frequentados na costa gaúcha. Nos 34 anos de atividade, preserva o casal fundador na administração, filhos e outros parentes, em mais um negócio familiar. Chegou a ter uma filial, derrubada pela mudança no hábito dos motoristas a partir da inauguração de uma obra que ajudou ao trânsito, mas se tornou um baque no movimento da Estrada do Mar: a duplicação da BR-101 “roubou” parte dos clientes e a Fruteira do Pelé 2 faliu.
Pelas estantes, há panela de ferro ou barro, gamelas, brinquedos de madeira, cachaças e doces caseiros. Da cozinha saem pastéis e sanduíches - bem servida, a torrada de pão colonial não foi vencida pelo trio de reportagem que provou o misto quente com salame, ovo, queijo, tomate, alface e bife de gado.
Os sucos são em sistema de rodízio: o cliente paga R$ 15 e pode provar os diferentes sabores, quantas vezes quiser, uma super expressão do “choro” por um gole extra. Mas não são os produtos o encanto da fruteira. O atendimento é o destaque, com brincadeiras, trocadilhos e até truques de mágica.
— Se tu conseguir desvendar esse mistério ganha um carregador universal de celular. Carrega até cinco telefones ao mesmo tempo — promete Rangel Bitencourt de Mattos, 33 anos, o Batatinha, enquanto surpreende o cliente com o “carregador”: uma sacola plástica.
Nas mesas, os atendentes distribuem, gratuitamente, um prato com iguarias como linguiça, queijo e pepino em conserva. Também de graça, recolhem sorrisos: “Vai um suco de abacaxi com gosto de laranja?”. Assustam ao anunciar um “pastel de camarão”, informando em seguida que camarão era o apelido do boi no pastel de carne moída. O salaminho é diet.
— Dai-me o dinheiro que eu dou-te a mercadoria — explica a piada o garçom Thiago dos Santos Silva, 18 anos.
O entretenimento inclui mágica: Pelé distribui cartas com dezenas de números estampados e afirma adivinhar quantos anos a pessoa tem, garantindo jamais ter errado na previsão. Pede ao cliente que aponte em qual dos cards está a idade e assim repete, com cinco cartões de diferentes dezenas. Ao final, revela:
— Tu é jovem, muito jovem: 31 — acerta a idade do fotojornalista Anselmo Cunha, que ergue as mãos em sinal de incredulidade.
O apelido do empresário foi autoproclamado ainda na infância, e não tem nada a ver com sua aparência, que é bem distinta da do rei do futebol. Ele costumava dizer para o pai não lhe chamar de Fernando, e sim de Pelé, pois se achava o melhor jogador do mundo enquanto fazia embaixadinhas com a bola. Se não ganhou o troféu no esporte, acabou eleito pelo casal Adriana Oliveira e Edson Michelon, ambos de 50 anos:
— A gente passa aqui na ida e na volta, porque é sempre bem recebido.
Albino renovou a tenda erguida pela mãe quatro décadas atrás
Há 40 anos, Zilda de Oliveira Albino fincou quatro estacas de madeira junto à BR-101 e as cobriu com plástico de carga de caminhão. A agricultora, que já faleceu, vendia frutas e legumes, além do queijo produzido pela família na propriedade de Terra de Areia, a poucos metros do limite com Maquiné (km 57 da rodovia federal). A lona foi substituída por uma pequena edificação e hoje é uma simpática casa no formato tradicional das tendas de estrada, gerenciada pelo filho, Joel de Oliveira Albino, 53 anos.
— Albino não é porque é branco, é porque é português — se adianta o herdeiro.
— Eu gosto muito desse lugar, e quero ficar, mas tenho medo que o pedágio acabe fechando os acessos da tenda — admite, listando uma série de vias interditadas pela legislação que respalda a praça de cobrança.
A família vive nos fundos, que tem toda estrutura de um lar - o verdadeiro home office. Em um canto, isolado e sem poder servir cachaça por questões sanitárias, está uma pipa de carvalho do alambique centenário que o avô mantinha.
A herança da fundadora do comércio não é apenas material, mas também protege o patrimônio: uma árvore caneleira foi cultivada numa ponta do terreno e suas sementes plantadas como proteção dos ventos gerados pelos caminhões que trafegam no costado. O telhado foi destruído duas vezes enquanto não havia o vegetal como barreira.
A fachada da Tenda do Albino tem abacaxis alinhados sobre uma gôndola de madeira, vistosas abóboras de pescoço que parecem ganchos verde e amarelo e pencas de banana penduradas aos montes. Por semana, segundo o agricultor, são comercializados 2,5 mil quilos do fruto.
— O melhor daqui é que a gente faz muita amizade — afirma a esposa de Albino, Ângela Bernardes da Silva, 39 anos.
— Tem um juiz aposentado que virou meu amigo. Convidamos ele pra comer uma galinha caipira, agora ele vem direto aqui em casa, vai no sítio, até ajuda a gente no atendimento — complementa Albino.
Abacaxi de terra de areia
A Rota do Sol, entre a BR-101 e a Estrada do Mar, é permeada por potreiros e riachos, com residências que são mais do que uma casa de temporada: muita gente mora junto da Lagoa Itapeva.
Entre as curvas, são vistos chalés de madeira, lojas de pescados retirados do afluente, tendas com nomes familiares ou que remetam à principal ligação da rodovia: a serra gaúcha.
— Eu adoro trabalhar com os gringos. Reclamam do preço antes de comprar, mas voltam depois e compram de novo — se adianta Sila Pereira, 70 anos.
Dona Sila cuida da Tenda Serra e Mar (RS-486, km 41, Terra de Areia) com as duas filhas, Elis e Rose. O primeiro comércio da família foi aberto em 1980, quando chegava a vender 5 mil abacaxis em um domingo.
— Era outro tempo, menos concorrência das tendas. E eu também tinha mais saúde pra trabalhar. A cabeça quer continuar, mas o corpo tá cansado, meu filho — reclama, mas segue regando as plantas.
De tijolos à vista amarelos, o local tem estantes repletas de cachaças artesanais e feijão do Litoral, potes de mel, compotas de doce, cestas de vime e porongos com abertura para ninho de pássaros. Em outra ponta, espigas de milho, morangas e banana orgânica, com o carro-chefe que leva o nome da cidade: o abacaxi de Terra de Areia.
— Tem gente que vem de São Paulo atrás do abacaxi. Querem o legítimo, da terra do abacaxi — comemora Rose.
Extraterrestres chamam atenção na RS-030
A BR-101 é a rodovia com a mais vasta opção de comércios: são 30, fora os que ficam em vias internas ou não avistados pela reportagem. Já em Osório, vizinho à Polícia Rodoviária Federal (km 84), o veranista pode encontrar vasos de concreto coloridos, moldados no próprio local pela artista Lucinéia Berzagui da Silva, 48 anos.
— O amadeirado é o que mais vende, mas o preto tá em alta. Eu não tenho tempo nem de trazer pro pátio, eles levam lá de dentro — afirma a dona do Vasos Costa Verde, apontando para o ateliê com mais de 500 peças.
Já na RS-030, o assunto alcança ares de outro planeta: imagens religiosas disputam a atenção do público com extraterrestres. É a Estátuas Oliveira (RS-030, número 2745, Osório), de onde saiu o ET verde cintilante, famoso por acompanhar caminhoneiros Brasil a fora.
— Quando eu criei o ET, ninguém deu nada. Passei a levar no caminhão, aí o pessoal começou a pedir. Bombou — conta Marcelo Ferri Germano, 47 anos, responsável pela logística e genro do idealizador da fábrica.
Fundada em 1994, a fábrica tem 4 mil itens expostos em um jardim que impressiona: da rua, não há como ter ideia do arborizado espaço interno, que mistura fontes, gatos e cães de concreto, budas e recipientes para plantio. Os corredores são extensos, até chegar no atelier em que Ordério Rosa de Oliveira, 65 anos, fez o primeiro molde.
— Era só mato aqui. Meu pai que plantou muda por muda dessas árvores. Tudo é a criatividade dele — afirma o filho, Jonathan de Oliveira, 25 anos.
A produção inicia em blocos de borracha, para esculpir os detalhes. A parte externa é de fibra, para formar a peça. A equipe trabalha com concreto e pó de mármore, lixa, retira os excesso e, com a arte, esculpe até o rosto de uma pessoa, garante a família.
— O mais legal é ver pronto. A satisfação de pegar uma peça crua, sem molde nenhum, e depois ver transformada — define a outra filha do artista, Diana Machado de Oliveira, 43 anos, ao lado da irmã, Deise.
Seres ficcionais como Pantera Cor-de-Rosa, Shrek, bruxa da fábula Branca de Neve, animais variados como pavão, leão, cavalo e coelho montam uma grande fila às margens da rodovia estadual. Grutas com e sem santos também podem ser compradas, assim como chafariz para eventos, hotéis e casas de espetáculos.
A reportagem de GZH visitou a tenda nessa quarta-feira (1º), véspera dos festejos de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes. Paulo Reis, 47, carregava na caminhonete a imagem de matriz africana, com lâmpadas azuis internas, feita sob encomenda.
— Enquanto o pessoal tá cozinhando canjica, eu vim buscar essa obra, um trabalho perfeito — elogia o pai do terreiro Ilê de Oxum Obà, no Morro da Borússia, em Osório.