Dedilhados de violão, ensaios de sanfona e um gole na marisqueira – espécie de cachaça artesanal dos engenhos do Litoral Norte. A amizade de longa data do grupo de cantores de Terno de Reis se comprova nas piadas, tão íntimas quanto a sintonia dos intérpretes de canções religiosas. A “passagem de som” não necessita tempo maior do que o de um verso.
— É sempre essa bagunça aí. Começa agora e só Deus sabe que hora ele volta — determina a agricultora Eliane Schutz Sebastião, 53 anos, esposa do líder do grupo que mantém viva a tradição trazida ao RS pelos açorianos em 1750.
Somente com a luz da lua, o grupo se retira do local de encontro e, espreitando a noite, chega silencioso em frente a uma casa antiga de madeira. Com os faróis apagados, os carros foram deixados antes do portão – sem tranca, privilégio de quem vive na pacata comunidade da Raposa, interior de Três Cachoeiras.
— O bom do terno é a surpresa. A emoção do “cantador” é ver a reação ao abrir a porta. Já cantei em casa de pessoas que choraram o tempo todo — conta o caminhoneiro Nestor Behenck Sebastião, o “Quartinho”, 56 anos, que há mais de 40 segue os passos do pai.
Sem qualquer combinação, o primeiro toque de viola desperta as demais vozes. “Porta aberta, luz acesa”, solicita uma das estrofes, que logo em seguida tem seu desejo atendido.
A cantoria segue a história bíblica da visita dos Reis Magos a Belém, após o nascimento de Cristo. As idas às casas com o grupo musical se inicia no dia 25 – quando, segundo os escritos sagrados, uma estrela nos céus indicou o caminho da manjedoura – e acaba no dia 6 de janeiro, o Dia de Reis, data em que o trio teria conhecido Jesus.
— Terno vem do número de reis, que levaram ouro, incenso e mirra, preciosidades da época, para homenagear Jesus — explica o historiador Manoelito Savaris.
O tradicionalista dedicou estudos a festa cristã, e defende o folclore passado de geração para geração:
— Essas manifestações contam a história da própria sociedade. É criadora de laços de integração comunitária. É a ciência do povo, folclore puro, repassada na convivência familiar.
Três Cachoeiras está entre as regiões mais tradicionais das festas de Reis no Estado, segundo o historiador. Apesar de as famílias remanescentes serem de maioria germânica e italiana, a chegada em massa dos açorianos no século 17 arraigou a cultura, espalhada ainda pelo Litoral Sul e pela região da Serra – na rota dos tropeiros – e nas Missões.
Também presente no nordeste do país, a tradição católica teve sua história espalhada nas grandes cidades em 1960, graças a Paixão Côrtes, autor do livro Terno de Reis - Cantigas de Natal, feito de pesquisas em incursões por regiões com forte ascendência açoriana na década de 1950.
Ao entrar na casa, o banquete
Após 15 minutos de súplica no quintal, as portas se abrem, com o aceno do anfitrião, e uma segunda etapa do festejo se inicia. Dentro da residência, encantadoramente simples e repleta de imagens cristãs, a recepção é de banquete colonial: roscas de polvilho, linguiça, morcela frita, costela de porco assada, mexido de ovos com carne e os mais variados doces – todos preparados pela anfitriã, a agricultora Maria Schwanck de Candia, 80 anos.
— Todo ano o pessoal vem aqui. Não é muita coisa, mas a gente faz o que pode — justifica-se, com a simplicidade do povo do Interior, que mesmo com mesa farta se mostram preocupados em agradar os visitantes.
O bananeiro Pedro Antônio Sebastião, 88 anos – pai de “Quartinho” –, esbanja vitalidade e bom humor, seguindo o ritmo das brincadeiras entre uma música e outra. Prega até uma peça no repórter, que quer saber o que aquela noite “mexe em seus sentimentos”.
— Mexe só quando eu danço — rebate. E complementa — Quem gosta de velho é reumatismo. Mas mesmo assim não é que nos bailes elas me tiram pra dançar? E eu tenho que ir — conta o assanhado senhorzinho namorador, viúvo duas vezes, com um casamento próximo no horizonte.
Quando não fazem caravanas de casa em casa, o grupo de (variáveis) oito componentes se apresenta em missas na região. Abrindo e fechando a celebração, seguem o ritual de ingressar na igreja ao som de seus instrumentos e só sair após a bênção do padre. Se a casa não é a paroquial, a fé é demonstrada em versos em frente ao presépio instalado sob a árvore de Natal, com o grupo todo ajoelhado.
Quartinho – apelido ganho quando rebocava de argamassa a peça de uma casa construída pelo pai –, mistura o entusiasmo com preocupação, ao falar da continuidade do Terno de Reis na região onde vive.
— Acho que a tradição morre comigo. Duvido que a próxima geração consiga seguir, lembrar das músicas e se dispor a fazer o que a gente faz — lamenta.
A reposta pode vir da mesma casa visitada na noite deste 6 de janeiro. Neto de João Batista, o pequeno Fabrício Candia Schaffer, nove anos, acompanha a serenata balbuciando as melodias:
— Eu quero continuar cantando Terno de Reis.