— Ele procura por um dono de raça, com pedigree.
A brincadeira espirituosa do guarda-vidas Gil Pereira, 44 anos, faz todo sentido no contexto em que ele socorreu um cãozinho vira-latas, na tarde do último dia do ano, no mar em Imbé, no Litoral Norte. Abandonado na rua, o cachorro de três patas correu para se esconder dos fogos, no dia 31, mas assustado com o barulho, caiu no canal que divide a água salgada do Rio Tramandaí. Com a força da correnteza, foi arrastado para dentro do mar.
— Ele estava lá na praia de Presidente, tomando água do mar, e eu tentei trazer para o meu guarda-sol. Mas com o barulho, ele saiu correndo e foi para o canal — relembra a agente de viagens Marta Fehlauer, 39 anos, que reencontrou o bichinho nesta sexta-feira (3).
Pescadores avistaram o animal se afogando e acionaram a guarita de número 137. Gil não hesitou, subiu na prancha estilo long board e nadou até a arrebentação.
— Eu pulei, foi tudo muito rápido. Se para nós, que treinamos bastante, não é fácil atravessar o canal, imagina para ele, com apenas três patas.
O guarda-vidas relembra que o vira-latas estava só com o focinho para fora da água e bastante nervoso. Neste momento, o socorrista relembrou dos seus treinamentos, lançando mão de técnicas para acalmar a vítima de afogamento.
— A gente tem o hábito de se apresentar "eu sou o guarda-vidas e estou aqui para te ajudar". Ele estava apavorado. Eu queria dizer "pode ficar tranquilo, você está salvo". Aí eu grudei ele e coloquei na prancha.
Amigo de longa data e colega na corporação, Ricardo Beskow, 33 anos, credita a ação de Gil como "um ato de amor" e "exemplo de cidadania para começar 2020". E brinca com a resistência do cão.
— Deve ter cruza com gato. Já perdeu uma pata, provavelmente em um atropelamento, e agora se afogou. Tem umas cinco vidas ainda — calcula o bem-humorado guarda-vidas.
Com veia de protetor, Gil secou o animal e ainda retirou carrapatos. Para não devolver às ruas, cedeu seu lar temporariamente. Mas revela dificuldade em mantê-lo.
— Já tenho três cães e uma gatinha, tenho vontade, mas não é fácil ficar com ele. Há gente interessada, vou analisar quem tenha condições de cuidar bem — explica, com o novo amigo no colo.
Em casa, o animal não desgruda do seu salvador. Com o rabinho abanando, segue o guarda-vidas em todos os lados, como se lembrasse da nobre atitude e do pavor enfrentado no Réveillon. A proibição da queima de fogos de artifício barulhentos (acima de 100 decibéis) virou lei, mas não virou regra no RS. Enquanto não for regulamentada, não há fiscalização, e a atitude segue afetando pessoas sensíveis ao estampido, e os animais, com audição muito mais aguçada do que os seres humanos.
Comandante dos guarda-vidas de Imbé, o tenente Joel Cardoso estende a ação ocorrida na guarida 137 para o restante dos seus comandados.
— O lema dos bombeiros é não medir esforços para salvar vidas. Independentemente de ser uma pessoa ou um animal — garante.