O mar virou lagoa em cerca de três dos mais de 200 quilômetros de orla da praia do Cassino, em Rio Grande, desde sábado passado (18). Num trecho entre as guaritas 14 e 22, a última da orla, uma lâmina de lama espalhou-se pela areia, impedindo a aproximação de banhistas e retendo as ondas em parte deste trecho.
Fenômeno que só ocorre nesta região no Brasil, segundo a diretoria de Qualidade, Saúde, Meio Ambiente e Segurança do Porto de Rio Grande, o avanço da lama sobre a orla é resultado de um bolsão de detritos que se movimenta no oceano conforme os padrões de vento e correntes marinhas, numa profundidade entre cinco e seis metros, desde novembro do ano passado, e que chegou à praia depois de uma ressaca no mar.
Conforme o diretor do órgão, o oceanólogo Henrique Ilha, a lama é resultado da união de diferentes sedimentos finos, oriundos de 70% dos rios do Estado, que desembocam na Lagoa dos Patos e avançam para o mar em Rio Grande. Estes resíduos, explica Ilha, são formados pelas terras de lavouras ou de pecuária que ainda utilizam técnicas sem a proteção do solo, instaladas próximas a cursos de água e que se soltam com as chuvas, e da redução de matas ciliares, que potencializa o assoreamento dos rios. Esses materiais — incluindo também esgoto doméstico — são despejados diretamente na laguna.
— O esgoto acaba se diluindo até chegar ao mar, não prejudica a saúde dos banhistas e do meio ambiente. Além da nossa equipe técnica, o Sistema de Monitoramento da Costa Brasileira em conjunto com a Universidade Federal do Rio Grande (SiMCosta/Furg), está realizando todos os estudos nos materiais depositados na orla e que estão na linha d'água, numa área entre a estátua de Iemanjá e a localidade de Querência. Pelos levantamentos realizados, é um sedimento fino e de fácil recuperação natural para o ambiente e uma volta rápida à normalidade do uso recreativo desse trecho da orla — esclarece Ilha.
Em dezembro do ano passado, a Superintendência dos Portos do Rio Grande do Sul emitiu comunicado sobre a possibilidade de movimentação da lama. Na época, o bolsão foi relacionado às fortes chuvas entre setembro e outubro no Rio Grande do Sul, que ajudaram a despejar mais sedimentos da bacia hidrográfica em frente à praia.
Oceanóloga do Porto de Rio Grande, Katryana Madeira aponta que os primeiros registros deste fenômeno datam de 1901. Desde então, a praia já foi atingida pelo menos 33 vezes. Em 2016, o ano com mais ocorrências, foram três situações entre o inverno e a primavera.
Katryana explica que o vento Nordeste transporta o material fino da laguna para o mar, fazendo a pluma de sedimentos avançar até 30 quilômetros para dentro do oceano. A atuação do vento de Nordeste gera um vórtice (redemoinho) na saída dos molhes da Barra, aprisionando os sedimentos na região em frente à praia do Cassino. Esses sedimentos alimentam os bolsões de lama ali existentes. Esse depósito de sedimentos finos fica estacionado à espera da próxima ressaca.
— Em toda a Lagoa dos Patos, o único ponto de abertura para o mar é na barra em Rio Grande, aumentando ainda mais a quantidade de sedimentos rumo ao oceano. É um sistema gigante, que só existe aqui no Brasil. O que torna a situação ainda mais peculiar — aponta a oceanóloga.
Não há prazo para voltar ao normal
O secretário de Município do Cassino, Miguel Satt, recorda que na ocorrência anterior, em dezembro de 2018, a lama surgiu em formato de "pelotas de barro", mas com mais intensidade. A área voltou a ser utilizada depois que o vento cobriu de areia o trecho atingido. Desta vez, uma espécie de tapete de lama veio de forma única, impedindo sua retirada. No sábado passado, quando o expurgo avançou sobre a praia, a prefeitura sinalizou o local com placas e o cercou com morros de areia, indicando a impossibilidade de banho na área. Apesar de não causar danos à saúde, segundo oceanólogos e técnicos da prefeitura, ainda não há segurança para entrar na água porque a lama está nos primeiros metros de profundidade e pode prender os banhistas.
Satt indica que ainda não há prazo para que o trecho atingido volte à normalidade. Não há como limpá-lo e dependerá da própria natureza para se recompor. O restante da praia do Cassino, ressalta o secretário, continua frequentado pelos turistas e veranistas normalmente.
— Pela nossa experiência em anos anteriores, desta vez está indo mais rápido. As ondas já estão voltando entre as guaritas 14 e 19. Calculo mais uns dez dias, mas não podemos garantir. Dependemos de chuva e da natureza — diz Satt.
Nesta quarta-feira (22), a equipe de GaúchaZH percorreu a praia do Cassino, encontrou placas indicando liberação para banho em pontos onde ainda há barro na areia, outras alertando para o perigo da lama e constatou um mar completamente sem ondas entre as guaritas 20 e 22. Informado pela reportagem, o secretário de Município do Cassino indicou que enviaria uma equipe ainda na quarta-feira para retirar temporariamente as placas que liberavam para o banho.
Mesmo sem veranistas entre as guaritas mais atingidas, os guarda-vidas seguem com programação normal de trabalho. Para eles, o que mudou foi a função: estão orientando os desavisados a não se aproximarem da água passando pelo barro. Outro problema é que a maior parte dos banhistas tem procurado as áreas mais distantes para o banho e sem a cobertura da Operação Golfinho, que só vai até a guarita 22.
— Tem gente que faz questão de meter os pés na lama, justificando erradamente que ela pode ser medicinal. Precisamos sempre argumentar que não é nada disso. Ficar neste lugar é como trabalhar num mangue. A diferença é que aqui os siris morreram — lamentou um guarda-vida, que pediu para não ser identificado.
Num dos pontos da guarita 19, a repórter e o fotógrafo atolaram os pés cerca de 30 centímetros para se aproximarem da veranista Márcia Simone Schmidt, 46 anos, que tomava banho de sol numa área já coberta de areia e mais próxima do mar. Ela, assim como a dupla, foi surpreendida quando se encaminhava para a praia e quase perdeu os chinelos.
— Vi uma placa dizendo que a área está própria para banho e ultrapassei o morrinho feito de areia. Caminhei dois metros e afundei. Como já estava com barro até quase os joelhos, segui para o mais próximo da água, onde já estava seco. Havia uma ave atolada e, junto com a minha família, salvamos ela da lama. Um tempo depois, ela conseguiu voar — contou.
Em frente à guarita 21, a equipe de reportagem constatou uma lama ainda mais espessa. Como a maré não avançava havia quatro dias no ponto, o barro começava a rachar. Em todo o trecho, foi possível encontrar peixes e siris presos sobre a terra ressecada.
Próximas à guarita 22, as amigas Maura Pecantet, 46 anos, e Maria Helena Pinheiro, 53 anos, caminhavam distantes da água quase 50 metros. O ponto é um dos mais atingidos pela lama. As duas haviam chegado na quarta-feira e pretendiam ficar até o dia seguinte. Como a região preferida por ambas está interditada, as amigas já programavam voltar a Pelotas na mesma tarde.
— Não tem cheiro de praia nem ondas. É como se o mar estivesse morto. Um cenário triste — resumiu Maria Helena.
Anos do fenômeno
- 1901 (janeiro), 1954 (dezembro), 1970 (janeiro), 1972 (fevereiro), 1978 (fevereiro), 1985 (julho), 1993 (abril), 1994 (novembro), 1995 (abril), 1996 (março), 1997 (março), 1998 (janeiro e março), 1999 (abril), 2000 (abril), 2001 (junho), 2002 (fevereiro), 2003 (maio), 2004 (abril), 2007 (novembro), 2008 (fevereiro e dezembro), 2009 (fevereiro e abril), 2010 (fevereiro), 2014 (março e abril), 2016 (julho, agosto e outubro), 2018 (dezembro), 2019 (janeiro) e 2020 (janeiro).
Fontes: até 2014, a lista pertence à tese de doutorado de Débora Martins Machado: Um Estudo Sobre o Clima de Ondas e o Transporte de Lama ao Largo da Praia do Cassino, RS. Foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Oceânica, COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir de 2014, são dados da diretoria de Qualidade, Saúde, Meio Ambiente e Segurança do Porto de Rio Grande.
Fonte: Henrique Ilha e Katryana Madeira, oceanólogos.