* Por Jane Tutikian, escritora, patrona da 57ª Feira do Livro
A poeira da estrada de chão batido prenunciava à professora e escritora Jane Tutikian - então uma criança - a chegada a Cidreira, balneário em que veraneava com a família. A patrona da Feira do Livro 2011 relata hoje suas memórias de verões na Rua Cinco.
Ontem, nenhum dos 28 leitores que deram o palpite acertou que a menina da foto era a escritora Jane Tutikian.
Retorno à casa do meu pai, abro o guarda-roupa, sento no chão e puxo a velha caixa de madeira. Abro com cuidado, com o cuidado que os passados guardados pedem. Sei as fotos que devo procurar e, imediatamente, meus cílios começam a ficar empoeirados da mesma poeira vermelha. Vou separando, uma a uma. Imagens desfiguradas. Memórias, não.
Primeiro, as caixas de comida para três meses eram colocadas lá no fundo, depois, as grandes trouxas de lençóis lavados com anil eram jogadas para dentro da carroceria da caminhonete emprestada.
Meu pai, minha mãe e meu irmão nenê iam na cabine, meu irmão grande e eu, na carroceria, deitados sobre as trouxas, ora cantando com meu pai, que cantava até Cidreira, ora brincando, ora implicando um com o outro, que, naquela época, para isso, um olhar bastava.
A viagem, num chão seco e cheio de costeletas, durava uma manhã inteira e, aos poucos, meu irmão grande e eu íamos ficando ruivos: cabelos, cílios, roupas, até os furos do nariz! Pouco importava! Éramos uma família rumo ao paraíso, ainda que no paraíso não tivesse luz, mas lampiões, não tivesse água encanada, mas uma bomba.
O paraíso era a casa de madeira verde, que meu pai construiu, rodeada de areia fina por todos os lados. Na Rua Cinco, apenas duas casas de pescadores. O Leonardo, a Anita, o Salvador, a Amália, o tio Cumbero...ninguém ainda tinha chegado!
Queria achar aquela foto da minha mãe com chapéu de palha! Lá atrás, o mar marrom, gelado, bravo, lindo! Que graça teria e que aventura haveria se todos os mares fossem verdes? Todos os dias descíamos as cinco quadras, rumo à praia, cada um segurando nas pontas de uma toalha de banho, fazendo uma rede para o meu irmão nenê! E, na tarde, na volta, meu irmão grande e eu brigávamos pelo sanduíche maior.
Quando fazia muito calor, dormíamos no avarandado, embalados pelo som dos sapos. Naquele ano em que meu irmão pequeno ainda nem tinha nascido, o desta foto, a gente foi passar o Carnaval em Capão.
Uma viagem cheia de risco pela beira do mar de iodo e de encanto: minha mãe fez uma roupa de bailarina para mim e uma roupa de palhaço para o meu irmão. O pirata da perna de pau me assusta, a margarida desfolhada canta no meu ouvido, eu os silencio e paro na foto.
Paro nos meus olhos de espanto e nos olhos tristes do meu irmão grande e sorrio. Fecho a caixa de madeira, coloco-a no lugar de sempre e sorrio. É o que, para além dos passados guardados nas fotos de verão, trazemos conosco, penso. Os olhos tristes do meu irmão grande, e os meus olhos de espanto diante das coisas e das gentes, da eterna novidade do mundo, como diria o Seu Caeiro.
Sabe quem é a pessoa da foto? Clique e dê seu palpite! A resposta será publicada na Zero Hora de amanhã.
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