Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor
O coração do amor é o canto, a poesia, o espanto. Diferentes caminhos levam a esse coração, como a música, o brinquedo, o erotismo, o humor. O pintor judeu russo Marc Chagall (1887-1985) dedicou sua vida aos seus amores, e escreveu que só uma cor dá sentido à vida e à arte: é a cor do amor. O amor, para ele, tem amplas dimensões: a Bíblia, Deus, sua cidadezinha de Vitebsk, na Bielorrússia, as artes e as mulheres. Chagall teve uma vida sofrida no mundo russo, e sua história faz recordar o sofrimento com humor dos contos de Tchekov. A imaginação de um dos maiores pintores do século 20 pôs toda essa vida nos seus quadros.
A cor do amor é uma cor pulsante como a história a seguir. Os namorados, que iriam se casar, viviam distantes, se enviavam longas cartas de 10 ou mais páginas, fitas gravadas com músicas e poesias de paixão. Um dia, o jovem recebeu uma fita em que a namorada gravou seu banho de banheira. Depois, ela falou, imersa na banheira, com uma voz suave e um som abafado. Ele podia escutar o som da amada entrando na água, junto à sua alegre voz que ficou marcada na sua alma para sempre.
Essa história revela, talvez, a cor essencial do amor, a cor que dá brilho à vida, que é a imaginação. Esse entusiasmo se pode ler na vida de Chagall, quando aos 21 anos se encontrou com Thea, sua primeira namorada, e escreveu: “Fiquei mais audacioso. Beijei-a dos dois lados. Não me contive mais”. Fez muitos quadros sobre as mulheres com diferentes cores, expressões, às vezes voando. Nas suas cartas, revela como, na ausência de sua esposa Bella, sofria tanto que não podia pintar.
Aliás, depender totalmente do outro, descansar no outro, é o eixo dos conflitos amorosos. Uma vida, quando se funda no outro, gera problemas constantes; o desafio é construir um sentido de si ao lado do outro. Lado a lado se desenvolvem laços amorosos, seja com a arte ou as amizades. Creio que imaginar todos com seu par ideal já não é tão essencial, porque há variadas formas de amar, de viver com dor e alegria.
Ademais, o amor não é perfeito, a não ser na flor – o amor-perfeito –, flor com cores vibrantes. Entretanto, nunca imaginei a expressão “defeito de cor”, e foi um impacto ao saber do livro da escritora Ana Maria Gonçalves (de 2006), que inspirou o desfile da escola de samba Portela no Carnaval do Rio de Janeiro. Esse estranho título, Um Defeito de Cor, se deveu a que os negros desejosos de ingressar no serviço militar ou no clero deviam pedir dispensa do “defeito de cor”. Um pedido de desculpas pela sua cor não ser branca. Nosso bravo país não considerava a cor preta uma cor do amor, daí a ideia de pedir desculpas. Muitos pensam que isso é história passada, mas não é, pois ser negra ou negro no Brasil é viver ameaçado pelos armados, pelo preconceito, por um racismo persistente.
Junto à leveza da cor do amor, existe a pesada revelação do defeito da cor, expressão do ódio. Amor e ódio, ódio e amor são palavras que estão associadas. O psicanalista Jacques Lacan criou a palavra haineamour, “ódioamor”, pois revela a verdade da condição humana. Chagall não foi marcado pelo defeito de cor, mas sim por ser judeu, pois desde pequeno sofreu discriminação. Primeiro na Rússia, depois na União Soviética e, finalmente, na Alemanha e na França.
Sempre sonhei que negros e judeus deveriam se apoiar na luta contra o racismo. Nos EUA, há vários exemplos dessa solidariedade na luta antirracista. No Brasil, começam a se conhecer essas pontes amorosas, como na análise feita pela psicanalista judia alemã Adelaide Koch à Virgínia Bicudo, que era negra. Ela conseguiu ser a primeira psicanalista brasileira, e a história dessa amizade está no filme Virgínia e Adelaide, dirigido por Jorge Furtado e Yasmin Thayná e com estreia prevista para este ano. Artistas como esses dois cineastas e a escritora Ana Maria Gonçalves iluminam o passado desprezado. O Brasil tem muitas histórias das quais se precisa tirar a pedra de cima, como a de Virgínia enquanto socióloga, psicanalista e pesquisadora. Os artistas são como vagalumes na escuridão: iluminam o passado recuperando histórias que ampliam os horizontes.
E recuperei, agora, ao ler Chagall, de Jackie Wullschlager, um passado distante dos judeus imigrantes. Esse gênio que fez pinturas, murais, mosaicos, vitrais e cenografias durante 80 anos escreveu, numa carta a um amigo: “Suplico a você que não seja pessimista. A vida sempre é linda, mesmo quando triste”.