Instagram, Facebook, Tik Tok, bancos, e-mails, serviços e sites de compras. A possibilidade de uma vida cada vez mais digital traz consigo a necessidade de múltiplos logins, senhas e dados. Mas o que fazer quando a pessoa já não está mais aqui? Qual o rastro digital que alguém que faleceu é capaz de deixar? Empresas de redes sociais têm adotado mecanismos para facilitar o encerramento de contas e também o acesso a perfis de entes por parte de familiares.
Ainda assim, encerrar contas e extinguir logins pode gerar transtornos para famílias, muitas vezes forçadas a recorrer a advogados e outros serviços. Empresas do Reino Unido e da Coreia, por exemplo, já oferecem serviços para deletar rastros na internet, os chamados funerais digitais.
Camila Leães perdeu a mãe em 2021 após uma doença que avançou rapidamente. Em meio ao sofrimento pelo falecimento de Virgínia Nascimento teve que lidar, além dos tradicionais documentos, como a certidão de óbito, com as burocracias decorrentes de cadastros e dados digitais.
— Naquela primeira semana, fiz 36 ligações para tentar montar as peças do quebra-cabeça e começar a resolver isso — recorda.
A história deu origem a plataforma brasileira Quando Eu Partir, empresa que oferece serviço para organizar e comunicar desejos, orientações e informações para a situação de fim de vida, facilitando o processo para parentes e amigos. A ideia foi justamente minimizar um caminho que pode ser doloroso de maneira mais objetiva.
— Durante o processo de luto, ninguém tem energia para nada. E precisa lidar com uma série de questões práticas. O relógio não para pra gente resolver questões emocionais. É preciso encerrar serviços digitais, como Spotify, NET, contas em redes sociais, entre outras coisas — observa.
Para evitar transtornos ao filho Santiago, de 14 anos, e ao marido Alexandre Silveira, cofundador da empresa, ela já deixou tudo encaminhado caso ela venha a faltar um dia.
— Não quero que eles tenham que lidar com todo esse processo. Quando eu morrer não quero que passem por isso. É um jeito de conseguir organizar as coisas para que a burocracia seja menor — sustenta.
Rastro digital
Além de ajudar a família a superar a perda, os funerais digitais visam preservar a reputação de falecidos e reduzir os riscos de hackers invadirem contas inativas em redes sociais. O objetivo é eliminar o conjunto de informações coletadas e armazenadas por usuários que usam serviços e ferramentas como aplicativos de bancos, redes sociais ou até perfis em sites de relacionamento, o chamado rastro digital.
— Tem relação com as buscas realizadas nas máquinas de busca, interações que a pessoa tem em redes sociais e as próprias conexões que a pessoa tem nas redes sociais, além de comentários que faz em blogs. Enfim, todas as interações que ela tem de forma digital — sustenta o professor do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jéferson Campos Nobre.
Durante o processo de luto, ninguém tem energia para nada. E precisa lidar com uma série de questões práticas. O relógio não para pra gente resolver questões emocionais. É preciso encerrar serviços digitais, como Spotify, NET, contas em redes sociais, entre outras coisas.
CAMILA LEÃES
Idealizadora da plataforma brasileira Quando Eu Partir
Nobre afirma que o processo para acabar com o rastro digital de um familiar morto depende de cada caso, mas pode ser demorado, a medida em que demanda acessos específicos e recursos potencialmente complexos. O especialista avalia que a demanda por serviços de funerais digitais pode crescer no Brasil a partir deste cenário.
O professor lembra ainda que depois que a pessoa falece, as contas que ela possuía podem ser invadidas, postagens podem ser feitas, podendo prejudicar, inclusive, a reputação das pessoas falecidas.
— Imagino que tenha demanda por esse serviço. Algumas redes sociais, como Facebook, permitem que se coloque uma pessoa herdeira da tua conta para dar conta desse tipo de questão, mas certamente muitas famílias vão preferir fazer isso de forma profissionalizada — alerta.
Herança digital
Diante desse cenário, questões envolvendo herança digital e remoção de informações de entes em redes ganham importância e ampliam discussões jurídicas. Professor de Direito Civil da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fabiano Menke explica que a herança digital é composta por informações relacionadas a determinada pessoa.
Isso significa que as pessoas não têm propriedade sobre a informação relacionada a elas, já que esse dado está sempre dentro de um contexto de comunicação e relações sociais, ou seja, é fluido. O professor lembra que quando se trata de herança digital, a questão que vem é da exclusão de perfis, especialmente em redes sociais dos usuários.
— Isso é muito comum que aconteça. Uma pessoa falece e deixa seu perfil numa rede social. E os familiares depois querem ter acesso a esse perfil, ou parentes, cônjuges, filhos. E a pessoa falecida não deixou senhas e aquele parente não tem como acessar aquele perfil de rede social, por exemplo. E aí vem a pergunta, a rede social é obrigada a entregar os dados para acesso ao perfil a esse familiar ou não? Sou da opinião que ela não é obrigada a entregar a um familiar porque aquela informação era relacionada à pessoa morta — afirma.
Em alguns casos, Menke observa que a pessoa que faleceu pode manter perfil em diversos canais e sites. O que pode tornar a tarefa de eliminar rastros digitais mais demorada.
— A remoção global (de dados) não é fácil, porque às vezes vai precisar, se for o caso, se houver uma negativa de remoção da informação, entrar com ação judicial. Às vezes uma notificação resolve, mas às vezes não. Então a questão não é tão simples, é uma questão bem complexa a remoção de informações relacionadas às pessoas — conclui.
O que fazer? Uma das alternativas, lembra Menke, é que as pessoas façam um testamento, um registro onde fique claro quem pode acessar as informações após sua morte. Isso porque, pode ser que o acesso a conversas nas redes e aplicativos seja íntimo, ou seja, a pessoa em vida pode preferir não compartilhar os dados.
— Nesse caso me parece que haverá uma violação de direito dessa pessoa, ainda que morta, porque ela ainda mantém, como se diz juridicamente, direitos da personalidade, direitos muito relevantes, como é a privacidade, a sua intimidade, para além da morte. Nesse contexto tem um debate ainda no Brasil se deve ou não passar as informações dos perfis e deixar o perfil para a pessoa herdeira, ou seja, se haveria uma herança digital — frisa.