Correção: o Cristo Protetor de Encantado tem 14 andares, e não 33, como foi informado das 22h de sexta-feira (16) às 20h12min de sábado (17). O texto já foi corrigido.
Uma febre empreendedora se alastra no Vale do Taquari: após o surpreendente sucesso do Cristo Protetor de Encantado, monumento de 14 andares que, mesmo sem estar pronto, já atraiu 185 mil visitantes, investidores de pequenos municípios vizinhos trabalham em projetos milionários para edificar grandes monumentos cristãos. O objetivo é, no futuro, estabelecer uma nova rota de turismo religioso na área.
Os projetos ocorrem em Estrela, Muçum, Anta Gorda, Santa Clara do Sul, Sério e Arroio do Meio (o único não religioso, com foco no tradicionalismo gaúcho). Em comum, são inspirados no Cristo de Encantado e resultam, em sua maioria, da organização de empresários locais, sem investimento público nas estátuas – o governo apoia na pavimentação de estradas, na sinalização e na promoção do destino.
Gestores locais citam a importância de desenvolver o turismo em toda a região para seduzir o visitante a transitar em outros municípios em vez de apenas conferir o Cristo Protetor e ir embora. É uma perspectiva bastante presente no setor: a de que, no turismo, não há concorrentes, apenas complementos.
— Estamos caminhando para nos transformarmos no Vale Sagrado. Temos, na região, a ferrovia do trigo, em diálogo com a natureza. Hoje, podemos complementar o roteiro de turistas que vão a Gramado e ao Vale dos Vinhedos, de onde estamos a apenas 40 minutos de distância. O turista que vem ao Cristo vai depois ao centro de Encantado — diz Rafael Fontana, integrante da diretoria da Associação Amigos de Cristo, responsável por gerir a estátua de Encantado.
Há potencial no nicho. Hoje, 4% do Produto Interno Bruto (PIB) do Rio Grande do Sul vem do turismo, enquanto que, em Santa Catarina, são 12% do PIB, segundo a Secretaria Estadual de Turismo (Setur-RS). Deduzidos os impostos, o turismo gaúcho gerou, em 2019, R$ 14,3 bilhões. A meta do governo Eduardo Leite (PSDB) é atingir R$ 28,5 bilhões em receitas em 2026.
O Ministério do Turismo estima que a religião tenha motivado 0,8% das viagens internacionais e 2,9% das viagens nacionais, conforme boletim divulgado pela pasta em julho do ano passado. Um filão que cresce cada vez mais é o de cruzeiros religiosos, com cultos e shows de artistas consagrados. A pasta ainda observa que, para o pós-pandemia, a tendência é de turismo de proximidade a fim de “resgatar o turismo comunitário, o turismo rodoviário, priorizar as viagens em família ou em pequenos grupos para conhecer áreas rurais e tradições religiosas locais”.
Convém recordar que pesquisa do Datafolha divulgada em janeiro de 2020 mostrou que 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião. A ideia de empresários e prefeituras do Vale do Taquari é atrair esse público religioso e oferecer opções de ecoturismo e de turismo de aventura que despontam em uma região repleta de morros, cachoeiras e trilhas.
— A gente sabe que o Cristo Protetor despertou o interesse de que podemos fazer diferente. As outras cidades começaram a olhar o viés turístico. Nossa região percebeu a oportunidade de fazer um monumento representando a fé e, assim, despertar o turismo. Outros equipamentos turísticos também têm surgido, como o Trem dos Vales. Foi vista uma oportunidade — resume Charles Rossner, presidente da Associação dos Municípios de Turismo da Região dos Vales (Amturvales).
Estamos caminhando para nos transformarmos no Vale Sagrado. Temos, na região, a ferrovia do trigo, em diálogo com a natureza. Hoje, podemos complementar o roteiro de turistas que vão a Gramado e ao Vale dos Vinhedos, de onde estamos a apenas 40 minutos de distância.
RAFAEL FONTANA
Integrante da diretoria da Associação Amigos de Cristo, responsável por gerir a estátua de Encantado
Em Encantado, a prefeitura entende que o Cristo Protetor foi beneficiado pelo efeito "regionalista" da covid-19, que fomentou viagens locais e nacionais. Agora que a pandemia acabou, ficou consolidado, entre muitos, o hábito de viver o presente e de planejar pequenas viagens regionais ou nacionais. Como resultado direto do Cristo gaúcho, a prefeitura de Encantado cita que, em uma cidade de 23 mil habitantes, foram abertas 581 empresas – sobretudo nas áreas de alimentação e hospedagem.
— Encantado é a AC e DC: antes do Cristo e depois do Cristo. A cultura das pessoas mudou. A forma como a gente cuida das ruas, como fazemos calçamento, nossas praças mudaram — diz o prefeito de Encantado, Jonas Calvi (PTB).
O monumento, que deve ficar pronto no fim deste ano, começou a receber visitantes em maio de 2021, em meio às obras, por desejo dos turistas. A cada fim de semana, recebe, em média, 2 mil turistas. A previsão é de finalizar os trabalhos em março do ano que vem.
— Quando a visitação no Cristo está aberta no fim de semana, a gente vê muito turista no Centro. Começamos a vender mais — diz o vendedor Mateus Madeira, que trabalha em uma loja em uma das principais ruas de Encantado.
Mas nem todos sentiram impacto. Há moradores e comerciantes que testemunham que, atualmente, a maior parte dos visitantes não se hospeda nem circula em Encantado, o que impõe o desafio de trazer o turista para a zona urbana.
— O pessoal que vai ao Cristo é em excursão, aí eles vão em pontos específicos e em restaurantes específicos. Claro que isso gera emprego e renda para quem trabalha ali, mas para o comércio não mudou muito — comenta Aristotelina Silveira, proprietária de uma loja de vestuário na área central de Encantado.
Turismo religioso
Mas por que um foco em turismo religioso? Empresários e gestores locais citam que o Vale do Taquari é uma região formada por imigrantes alemães, italianos e portugueses, para quem a religião era fator determinando na rotina – herança mantida até hoje. Em uma região onde o cristianismo tem força, monumentos religiosos ganham sentido.
Outro fator particular das empreitadas é que, em geral, são obras milionárias que partem de investimento privado. Imersos em uma cultura unificadora de cidades pequenas, empresários se dispõem a alocar dinheiro em investimentos que tragam retorno ao município.
— Os imigrantes, quando chegaram na região, desenvolveram a cultura associativista e cooperativista. As regiões de cultura católica e alemã tiveram isso muito forte, tanto é que as escolas que as igrejas faziam eram comunitárias. Tudo está interligado pela nossa herança cultural e religiosa — diz Charles Rossner, presidente da Amturvales.
O governo do Estado atuará para promover os destinos turísticos e por meio de investimentos em pavimentação para melhorar a circulação de moradores. A estrada que dá acesso ao Cristo Protetor recebeu R$ 4 milhões do governo gaúcho e R$ 4,5 milhão da prefeitura de Encantado. O investimento estadual veio por meio do programa Avançar RS, o programa de transferência de verba do Palácio Piratini.
Tem que pesquisar para ver se vai ter demanda e se esses monumentos vão atender a um fluxo turístico. É importante ter esse estudo de viabilidade para ver se isso vai ser sustentável ao longo do tempo
ALEXANDRA ZOTTIS
Turismóloga e coordenadora do curso de Turismo na Universidade Feevale
O secretário-adjunto de Turismo do Rio Grande do Sul, Luiz Fernando Rodriguez Júnior, esclarece que o Piratini não pode colocar verba pública diretamente em empreendimentos privados. A Secretaria Estadual de Turismo (Setur) elogia a iniciativa no Vale do Taquari, mas destaca que a implementação das atrações e da rota depende da iniciativa dos empreendedores e prefeitos dos municípios.
— Temos potencial para crescimento extremamente grande. O turismo é uma indústria sustentável e inclusiva. Temos que ter opção turística para todas as faixas salariais. E o turismo religioso é uma ferramenta importantíssima nessa condução. A pessoa pode vir pelo turismo religioso e depois investir no turismo de aventura — resume o secretário-adjunto.
Turismóloga e coordenadora do curso de Turismo na Universidade Feevale, Alexandra Zottis cita que o fenômeno de projetos de construção de grandes monumentos é positivo, mas que é preciso ter análises de mercado para não se deixar levar pela euforia.
— O Cristo de Encantado teve sucesso, os outros municípios se sentem motivados e buscam novidades. O que precisa é aprofundar para ver se essa proposta vai ter demanda. Quando municípios trabalham juntos, isso é positivo. Lógico, tem que pesquisar para ver se vai ter demanda e se esses monumentos vão atender a um fluxo turístico. É importante ter esse estudo de viabilidade para ver se isso vai ser sustentável ao longo do tempo — afirma a turismóloga.
Por que monumentos?
Há diversas formas de atrair turistas, mas os municípios do Vale do Taquari têm optado pela construção de grandes monumentos. Ao longo da história, o significado de construir estátuas gigantescas mudou – já comemorou conquistas, celebrou deuses e afirmou a glória de governantes, observa Augusto Alves, professor de História da Arquitetura na Universidade do Vale do Taquari (Univates).
— Antigamente, o monumento tinha um sentido mais religioso e de ligação com os deuses. Ao avançar na história, para os romanos, o monumento está ligado às conquistas, como o Arco do Triunfo de Constantino, em Roma. Na Idade Média, as igrejas faziam o papel de monumentos, e cada cidade queria fazer a maior, a mais bela e a que atrairia mais peregrinos — diz o docente.
O professor acrescenta que é exatamente o que acontece agora nessas cidades, a construção de um monumento para alcançar divulgação.
— Há uma busca de as cidades alcançarem uma visibilidade. Como são diversas pessoas que se reúnem, haverá olhares para movimentar a economia, mas não era diferente em outros tempos: catedrais há séculos também eram feitas para atrair peregrinos e uma força econômica. E não dá para negar o aspecto simbólico: para quem é religioso, promover sua fé em um monumento pode ser importante — acrescenta.
O que é o turismo religioso?
São atividades turísticas com foco na busca espiritual e na prática religiosa em espaços e eventos relacionados às religiões, segundo o Ministério do Turismo. A turismóloga e coordenadora do curso de Turismo da Universidade Feevale, Alexandra Zottis, acrescenta que o turismo religioso faz parte do turismo cultural - há pessoas não religiosas que visitam catedrais e monumentos para entender a expressão da cultura de uma região.
Quais outros destinos de turismo religioso existem?
No Rio Grande do Sul, são famosos o templo budista de Três Coroas, no Vale do Paranhana, e o Santuário de Nossa Senhora do Caravaggio, em Farroupilha, na Serra, e o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões. No resto do Brasil, há também o Santuário de Nossa Senhora de Aparecida, em Aparecida, São Paulo, a Igreja Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador e o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.