Catarina Machado fala muito. Tem a voz clara, as ideias organizadas, os gestos amplos. E Catarina, 44 anos, educadora popular e filha de Iansã com Ogum Velho, não fala à toa: tem muito a dizer. Em meio aos prédios do Núcleo 16 da Cohab Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre, ela discursa sobre seus anseios e projetos. Quer que a juventude do local evolua, estude, conheça os direitos que sequer imagina que possui. Que amplifique o seu grito para além dos edifícios de pintura descascada.
A vida de Catarina é marcada por uma tragédia. Em 2014, seu filho mais velho, Marcelo Machado Gonçalves, o Marcelinho, foi brutalmente assassinado, aos 15 anos. Foi punido por, morador do Rubem Berta, estar em outro bairro da Zona Norte.
A comoção popular causada pela morte de Marcelinho foi o combustível para que Catarina saísse do luto. Junto ao carinho de vizinhos, amigos, colegas do guri que sonhava ser jogador de futebol, veio uma indignação, uma vontade de fazer a diferença. Para além da busca por justiça, ela encontrou nos livros e na universidade os motivos para seguir a vida. E assim foi: graduação, MBA, mestrado e, hoje, o doutorado. Ela atua em projetos que levam o ensino profissionalizante a jovens quilombolas, além de militar junto a uma entidade que leva o nome de seu filho. A voz de Catarina é tão potente, que esta guerreira contará sua história com suas próprias palavras.
O começo de tudo
"Eu nasci na Alvorada. Ali eu me alfabetizei, vivi até os 15 anos. Sou filha do Ermelindo Nunes Machado e da Elza Santos da Rosa. Nasci na religião afro, nós somos da umbanda. O pai teve casa de religião durante 38 anos na Alvorada. O nome dele na religião era Machado do Ogum. Tem muitos filhos e filhas de santo dele espalhadas por Porto Alegre e Alvorada.
No meu 1º ano do Ensino Médio, o pai veio a falecer, e nós viemos para Porto Alegre: a mãe, eu e o meu irmão do meio. A gente começou aqui na Cohab Rubem Berta a procurar apartamento, e achamos no Núcleo 16. Eu chego aqui no Rubem Berta com 15 anos, com 17 eu termino o Ensino Médio no Colégio Estadual Elmano Lauffer Leal. E sempre trabalhando, desde menina. Meu primeiro trabalho foi como doméstica, lá na Alvorada. Respeito um monte essa classe trabalhadora, a importância do trabalho doméstico. Foi a minha primeira experiência com carteira assinada. A dona Iracema tinha um armazém.
Um dia, ela me disse: ‘Tu és muito inteligente, me ajuda a separar as notas para o contador’. Então, eu ficava um turno trabalhando na casa dela e no outro ajudando com as notas, na parte contábil. Ela me pagou um curso de datilografia, e eu datilografava as notas para ela enviar para a contadora. Quando eu cansei de trabalhar como doméstica, ela pagou o que me era devido e me deu um bloquinho de passagens para eu procurar estágio em Porto Alegre.”
Muito trabalho
"Meu primeiro estágio foi numa agência de turismo. E aí, não parei mais. Uma determinada época, comecei a trabalhar com a reciclagem de cartuchos para impressora. Nessa experiência, eu comecei a desenvolver algo que já era meu, que é a comunicação, a gestão de pessoas. Cheguei à coordenação de uma equipe de telemarketing. Mais tarde, passei em um processo seletivo e fui coordenar um call center terceirizado que captava recursos para entidades. Participei de projetos em Porto Alegre, Caxias do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Passava 15 dias em casa, 15 dias fora. No meio disso tudo, nasceram o Marcelinho, em 1998, e o Pedrinho, em 2011. Eu tinha uma rede de apoio me ajudando, mãe, irmão, mas estava cansada de ficar tanto tempo fora.”
Marcelinho
"Marcelinho nasceu em 18/8/1998, às 10 horas da manhã. Foi muito amado, muito quisto, muito bem criado. Em 3/11/2011, nasceu o Pedrinho. O Pedrinho teve a felicidade de conviver quase quatro anos com o Marcelinho. Grandes amigos.
No dia 19/7/2014, um sábado, eu estava com uma viagem marcada para Campo Grande (MS). Meu filho disse assim: ‘Mãe, eu quero ir no shopping (Bourbon Wallig) comprar um fone, com o primo Guilherme. Nós vamos passar na Delícias (confeitaria na Avenida Assis Brasil), comer uma fatia de bolo’. Foi a primeira vez que o Marcelinho saiu sozinho. Ele tinha 15 anos e 11 meses. O primo, 16. Chegou as seis horas da tarde e eles não chegavam, eu comecei a ligar e o celular não atendia. Já era escuro. Uma vizinha apareceu gritando, dizendo que o Marcelinho tinha sofrido um acidente e estava no Cristo (Hospital Cristo Redentor). Ali, eu não entendi mais nada. Eu fui me acordar, entender o que estava acontecendo, no hospital. Lá, eu descobri que o meu filho tinha sido baleado e que não tinha resistido. A partir dali, eu saí do mundo, me desorganizei. Foi um dos dias mais difíceis da minha vida. Me trouxeram para casa, era de madrugada, e era cada vez mais gente chegando, querendo saber o que aconteceu. A vizinhança, toda a comunidade dentro do núcleo, porque todo mundo conhecia o Marcelinho.”
O crime
"Foi uma morte estúpida. Meu filho saiu do shopping, e ele e o primo decidiram passar, antes, no bairro Passo das Pedras, para prestigiar o salão de uma pessoa que era próxima a nós, que havia inaugurado uma barbearia. Eles estavam sentados, esperando o dono do salão chegar. Era um espaço seguro, de gente conhecida, tanto é que o dono desse salão vinha na minha casa cortar o cabelo do Marcelinho, desde pequeno. Foi ali que o meu filho foi assassinado.
Meu filho esperava para ser atendido, quando chegou um homem, que depois a gente veio a saber que era parente do dono do salão, e perguntou: ‘Gurizada, de onde vocês são?’. Meu filho respondeu: ‘Nós somos da Cohab Rubem Berta’. Ele sacou uma pistola e deu dois tiros no abdômen do meu filho. Levaram meu filho morto pro hospital. Após a morte, nós lutamos muito. Depois de oito anos, teve o júri popular. Foi um crime muito sério, um crime que abalou uma comunidade. O Ministério Público nos apoiou o tempo todo. Conseguimos o julgamento, foi para júri popular, e o assassino foi condenado a 19 anos. O júri foi unânime, e eu passei nove horas no júri popular olhando para o assassino do meu filho. E estavam comigo todos os jovens que puderam ir, pessoas da comunidade, meus amigos da militância, advogados do movimento negro, parlamentares da bancada negra, da comunidade, amigos, parentes, professores, colegas da universidade.”
NOTA DA REPORTAGEM: O réu foi condenado em 11 de outubro de 2022 pela morte a tiros de Marcelinho. De acordo com o veredito dos jurados, o juiz de Direito Orlando Faccini Neto aplicou pena total de 19 anos de reclusão, em regime inicial fechado. Foram 16 anos pelo homicídio qualificado (motivo fútil e recurso que dificultou a defesa da vítima), e mais três pelo crime de porte de arma de uso restrito. Após o julgamento, houve recursos por parte do réu e do Ministério Público, e o processo foi encaminhado ao Tribunal de Justiça para julgamento dos recursos em 16 de janeiro deste ano, sem retorno até o momento.
Mobilização da comunidade
Infelizmente, a violência levou o meu filho. Quando a gente fez a missa de sétimo dia, a comunidade se organizou. Os jovens fizeram camisetas, faixas. Os armazéns colocaram faixas de luto. A comunidade, depois da missa – e eu rezei a missa no dia do meu aniversário – colocou roupas brancas, com faixas pedindo paz, balões, e fez um percurso por toda a Wolfram (Rua Wolfram Metzler). Foi a primeira vez que eu vi a comunidade se auto-organizar a partir dos jovens.
O Marcelinho tinha quase 1,80m, era atleta do Inter. Era da casa pro colégio, do colégio pro Inter. Depois trocou de escolinha, mas essa era a rotina dele. Todos os armazéns, as escolas, sabiam da idoneidade dele, do caráter dele, da educação dele. Tanto é que o comércio fez luto. Entreguei um dossiê sobre o meu filho para a doutora Lúcia Helena Callegari (promotora de Justiça), que foi a responsável durante os oito anos do processo. Uma guerreira, uma grande parceira, nós ganhamos uma amiga.”
Com a cabeça nos livros
"Quando o Marcelinho faleceu, eu fiz terapia, e a doutora me sugeriu fazer algo que eu gostasse para ocupar a mente. Daí, eu retomei a graduação, foquei. Terminei a graduação em Gestão Pública, fiz MBA. Prestei o processo de seleção de mestrado em 2018 na UFRGS, fui aceita e comecei a discutir a presença da juventude quilombola na aprendizagem profissional. Junto às lideranças, mapeamos 95 jovens quilombolas em Porto Alegre. Em 29/1/2021, no mesmo dia em que o Quilombo dos Machado tomava a vacina contra a covid, eu defendi o mestrado. Segui na pesquisa, hoje como doutoranda no Nega (Núcleo de Estudos, Geografia e Ambiente), da UFRGS. Tudo o que eu vivi do meu luto e experiência social, eu transformei em luta dentro da minha comunidade, de outras comunidades, e também dentro da universidade. A educação foi o que me ajudou a superar. Porque todos os dias é difícil. Dói todos os dias.”
O alvo tem uma cor; essa cor é preta
"A condenação do assassino para mim, que vem da área social, é uma questão que me inquieta muito. Mas eu entendo, enquanto ser humano e cidadã, que se a gente comete um ato tão brutal e violento desses, não está em condições de estar em liberdade, precisa se recompor, se reconstituir, se reorganizar. Eu lutei não pela condenação dele, mas por justiça pelo meu filho. E lutar pela justiça pelo meu filho foi lutar pela vida de muitos jovens. Porque a gente sabe do alto índice de genocídio da juventude negra. O alvo tem uma cor, e essa cor é preta. Luto pela educação, luto pelo direito à cidadania, luto por esse lugar que as juventudes têm que ocupar e é deles. E pelo respeito às nossas mulheres, às nossas mães, avós, tias, irmãs, primas, dindas, vizinhas.
Porque basta de exterminar as nossas juventudes. Eu nunca imaginei estar nesse lugar. O meu luto, eu transformei em luta. Não é fácil. Eu estou cansada de lutar, mas não vou parar. Porque é a partir da educação, dos movimentos sociais, da organização das comunidades, que a gente vai conseguir transformar essa sociedade, que está muito violenta.”
Espaço Marlon e Marcelinho
E com essa caminhada toda, em 2019, eu recebo uma ligação dos guris aqui do Rubem Berta, pedindo autorização para colocar o nome do que eles estavam fazendo de Espaço Marlon e Marcelinho. O Marcelinho e o Marlon eram vizinhos de porta, e os dois foram vítimas da violência, em momentos diferentes. O Espaço Marlon e Marcelinho não é uma criação minha, foi um presente pra mim. Um presente na minha vida. Aqui no Rubem Berta, temos alguns projetos para crianças e jovens, mas não dão conta da demanda, que é muito grande na nossa comunidade.
O Espaço Marlon e Marcelinho vai ser um espaço sociocultural, de biblioteca comunitária, para trabalhar a leitura, o reforço escolar, apoio psicológico às nossas famílias. Tudo o que a gente faz é com ajuda da comunidade e de apoiadores. Ganhamos um contêiner por doação. O espaço onde fica era um lixão. As juventudes lutaram muito. Neste ano, faremos mais uma edição do cursinho pré-Enem e pré-vestibular, em espaço cedido pela associação de moradores, que já está com vagas esgotadas. É diário, é intenso o nosso trabalho, são vários jovens, uma galera sempre envolvida. A gente atua no coletivo, vai se ajudando. E eu vou lutar o que eu puder para dar condições para os jovens, crianças e adolescentes terem um espaço digno, terem um projeto, terem políticas públicas chegando.”