Por Priscilla Machado de Souza
Membro da Appoa, autora de “A Função Po-ética na Psicanálise: Sobre o Estilo nas Psicoses” (2018)
Uvas são associadas ao prazer e à beleza desde tempos imemoriais. Ainda assim, a impressão estética da uva é superada para promover uma criação. O vinho resulta de um processo que engendra um ato de destruição: a prensa ou, de modo tradicional, a pisa da uva. Me agrada pensar que essa prensa extrai uma verdade da fruta. Algo que estava adormecido no belo surge de uma destruição, que, na verdade, é uma transformação criativa.
Assim também é com as palavras, daí a pertinência da psicanálise ao ler as dobras e os detalhes. No divã somente com a destruição do sentido único do enunciado é possível extrair algo de uma verdade antes inconsciente. No entanto, para além do divã, Freud nos ensinou a observar o Mal-estar na Cultura. A essa altura, início dos anos 1930, já sabia que as intenções de felicidade e progresso esbarram nas repetitivas malhas de um impulso de destruição que chamamos pulsão de morte.
Contudo, Freud não estava falando de uma aniquilação maquinal, como um comando “em linha reta”. Afinal, a negociação da pulsão de morte com o princípio do prazer nos coloca diante de muitos cenários de criação. Nesse sentido, a aventura humana aos ouvidos da psicanálise não condiz tanto com a busca pelo “ser feliz”, mas um caminho singular repleto de esquivas e criações diante da inevitável derrocada final. É fato que a psicanálise tem certa vocação para o pessimismo. Um pessimismo estruturante que serve como baliza ética – cada análise persegue os rastros de desejo deixados pelos atos enunciativos. Muito mais não se pode prometer, porque, findo o sintoma, há sempre uma cota de mal-estar no laço social. O divã não é uma ilha.
Apesar de tantos avanços tecnocientíficos – que possibilitam a alguns o privilégio de viver mais e melhor, inclusive com possibilidades mais dignas de acolhimento do sofrimento psíquico – e a despeito de todas as facilidades que a era digital nos brinda, prevalece uma viciosa cultura do mal-estar.
Estamos diante de um contumaz cultivo do machismo, das LGBT+ fobias, do racismo e de outras formas de opressão que não só saíram debaixo do tapete como têm sido exibidas como troféus; credenciais para mostrar a luz do dia. Mais do que isso, grupos se reúnem em torno da opressão e constroem fórmulas para o bem viver – seria essa a tal felicidade? Assim, temos visto mulheres declarando ser desejável a submissão aos maridos. E também masculinistas cujos coaches vendem receitas de “sucesso com mulheres” (basicamente, reconhecê-las como seres humanos de segundo escalão). Como nação, ainda ostentamos as vergonhosas marcas de ser o país que mais mata a população LGBT e onde a polícia mais mata pessoas negras.
Em 2021, a doutora em Antropologia Adriana Dias (falecida em janeiro) identificou a presença de mais de 530 células neonazistas no país; a maior parte alocada na região Sul. Estima-se um aumento de 270% em três anos, o que sustenta o alerta do avanço da extrema direita no mundo. Talvez nem seja necessário mencionar, mas todas essas organizações criminosas, cooptadas ou financiadas, além de não terem apreço pela diversidade humana tampouco estão preocupadas com o planeta, com a biodiversidade. Emergência climática e tragédia dos yanomami provocam risos nesse pessoal, mostrando o encurtamento do laço com a vida de modo global. “Viva o agora”, muitos deles disseram.
In vino veritas, já dizia o ditado. A recente verdade do vinho da serra gaúcha denuncia nossa vocação escravocrata que parecia presente apenas no hino. Eis que até um anacrônico príncipe (se é que estamos em uma república...), eleito deputado, quer garantir leis protetivas aos protagonistas dessas façanhas que não deveriam servir de modelo a terra nenhuma. Por outro lado, ativismos de ocasião também não ajudam. Do divã recebo a notícia de um perfil de rede social no qual consta: “antirracista nas horas vagas”. Muito bem! E nas outras?
Em meio a esse caldo cultural um tanto amargo, a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e O Instituto APPOA promovem a Jornada de Abertura 2023: “Ética-estética-criação-destruição”. Palavras que orientam meu trabalho e dos colegas Edson Luiz André de Souza, Volnei Dassoler e Ana Costa. Trata-se de um momento em que a instituição amadurece o enfrentamento do racismo aliando sua linha de trabalho “Psicanálise, racismo e políticas étnico-raciais” a um grupo formado por analistas majoritariamente brancos que desejam que a psicanálise, de um modo geral, contemple a diversidade de raça do nosso país. É urgente, mas também é para brindar!
Jornada de abertura APPOA e Instituto APPOA (2023)
Atividades entre as 10h e as 17h30min de sábado, dia 1º/4, no Teatro da Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600). Com as participações dos psicanalistas Ana Costa, Edson de Sousa, Priscila Machado de Souza e Volnei Dassoler. Veja a programação completa e as informações sobre inscrições no site da Associação Psicanalítica de Porto Alegre: appoa.org.br.