Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr.
Doutor em Psicologia Social Institucional (UFRGS), membro da Appoa, autor de “Ensaios Sobre as Pedofilias” (2021)
Medo, angústia, desamparo e incerteza foram alguns dos sentimentos desencadeados pelo fato de sermos invadidos por um vírus mortal capaz de marcar a história da humanidade. A partir de março de 2020, nossas vidas mudaram de forma inédita. O horror desse primeiro impacto foi sensivelmente agravado pelo descaso do governo com a vida, pois a mentira, o sarcasmo e a ironia continuam sendo as respostas face à incapacidade de demonstrar empatia com o sofrimento dos outros.
Diante desse rombo no real com o qual a pandemia nos defrontou, fomos convocados a lidar com diferentes formas de luto. Desde os mais cruéis como a dor de perder uma pessoa amada até o luto pela perda da vida que se tinha e pela necessidade de inventar novas formas de ser, habitar o mundo e se relacionar com os outros. Aos poucos, fomos estabelecendo redes de solidariedade e tecendo espaços psíquicos, para criarmos recursos de simbolização e não sucumbirmos no caos.
Para fazermos a travessia, fez-se imperativo reagirmos. Apesar de alguns já estarem atendendo de forma online há certo tempo, de repente, todas as sessões passaram a ocorrer sem a presença física. As dúvidas sobre as possibilidades de uma análise ocorrer dessa forma não impediram os psicanalistas de se apresentarem tanto para darem suporte aos pacientes que já estavam em atendimento quanto para acolherem novas demandas.
Ao dialogar com colegas de diferentes regiões do país, é notável o crescimento da demanda por análise. Desde Freud, o que possibilita o processo analítico, além de o sujeito reconhecer alguma dimensão de mal-estar, é a constituição de um amor de transferência com o analista. Ou seja, a suposição de que ele tenha algum saber a ponto de ajudá-lo a suportar o peso de seus sintomas, lidar com os desejos e se responsabilizar pelos rumos de sua vida.
Assim, por amor à psicanálise e por responsabilidade com a clínica, seguimos a herança freudiana de sermos destemidos em relação às transferências, não recuando dos desafios de nosso tempo. Muitas foram e ainda são as dúvidas: é possível uma análise online? Quais as particularidades da transferência e da direção do tratamento nesse contexto? Como sustentar os fundamentos da técnica, do método e da ética psicanalítica nessa modalidade? Mesmo diante de tantas indagações, sabíamos que o inconsciente não daria folga. Imersas em um mar de incertezas e angústias, as pessoas necessitavam ser escutadas.
A demanda de fala, os sonhos e os pesadelos precisavam ser compartilhados com alguém em condições de escutar de forma acolhedora, contundente, não estereotipada e, tampouco, moralista ou prescritiva. Mais uma vez, nesse verdadeiro caos real e subjetivo em que a esperança e as referências se fragilizaram, a potência da transmissão freudiana deu sua contribuição no laço social. Creio que a psicanálise sairá revigorada e reinventada dessa pandemia, seja pelo testemunho dos analisantes, seja pela ampliação do diálogo com outros campos do saber.
Recentemente, participei do debate com Roland Chemama, Lucia Pereira e Fernando Hartmann para pensar a psicanálise na atualidade. Chemama, ao colocar em relevo a discussão entre o formalismo do atendimento e a ética, aponta algo importante para pensarmos além da formalização da teoria, chamando a atenção para questões que incidem sobre o analisa e a forma de conduzir os tratamentos. Logo, os efeitos da análise não estariam limitados ao setting, mas à ética do psicanalista. Lacan foi preciso em relação a isso, pois, se, de um lado, é função do analista possibilitar ao sujeito a leitura do insabido naquilo que diz, de outro, não cabe a ele fazer uso do suposto poder representado.
Na singularidade de cada paciente, laboramos para que ele possa se apropriar de seu patrimônio inconsciente e sustentar a sua voz. Isso terá implicações nas formas de amar e de lidar com os outros. Portanto, a psicanálise começou com o amor de Freud pelo saber inconsciente e se renova diante do nosso desejo de saber mais sobre as múltiplas formas de amar e de se relacionar.
O evento
Jornadas Clínicas da Appoa e Instituto Appoa – A Transferência e a Outra Cena Hoje
Dias 19 e 20 de novembro, com participações de psicanalistas do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Transmissão online pela plataforma Sympla. Inscrições em gzh.rs/JornadaAppoa. Outras informações em appoa.org.br.