Maíra Brum Rieck
Psicanalista do Museu das Memórias (In)Possíveis
Alexandre Pandolfo
Doutor em Letras, integrante do Coletivo Testemunhos da Pandemia
Sabemos que a pandemia de covid-19 foi um evento mundial, mas também sabemos que, no Brasil, não foi “somente” uma pandemia. O Brasil viveu um genocídio. Centenas são as reportagens e investigações que comprovam isso.
Mas, ao nos situarmos a respeito do que aconteceu no Brasil, não estamos diminuindo ou comparando sofrimentos entre populações, nações ou indivíduos. Estamos sublinhando que nós, brasileiros, além de termos vivido e ainda vivermos os horrores de uma pandemia, como todo o resto do planeta viveu, ainda tivemos de lidar e lutar contra o aparato do Estado desejando e arquitetando nossas mortes, as mortes dos nossos.
A pandemia foi instrumentalizada pelo governo Bolsonaro, que não se mostrou preocupado em tentar evitar os contágios e as sequelas da doença. Pelo contrário, a pandemia no Brasil foi negada. Os mortos foram ridicularizados e a morte, banalizada. As vacinas foram negligenciadas. Experimentos biológicos com remédios comprovadamente ineficazes foram realizados em grande escala, com cobaias humanas. Uma população inteira foi desinformada oficialmente. O desmentido tornou-se a regra de tratamento político.
Ora, nós sabemos das mortes evitáveis, sabemos muito bem. Mas quais os efeitos disso em nós? O que fica de marca em nossa construção subjetiva? Como nos constituímos como cidadãos e como sujeitos quando o poder público arquiteta nossas mortes? Quais os sintomas gerados? E as dores? Quais as marcas que ficarão em nós? E nas crianças que foram impedidas de se vacinar por pais que não acreditaram na vacina? Quais os efeitos disso nos órfãos que perderam seus pais não para o vírus, meramente, mas pelo vírus transformado em arma?
É lógico que as pessoas que viveram a pandemia em um país em que o poder público estava preocupado em salvar vidas terão uma memória e uma forma de fazer laço com o espaço público muito diferente de quem a viveu no Brasil. As marcas serão outras, a dor será inscrita de forma distinta. O luto ali pode adquirir outra materialidade.
Cabe a nós, cidadãos, portanto, resistirmos. E uma das formas de resistir, aquela que especialmente nos ocupamos, é fazer memória. É testemunhar. Testemunhar para poder lidar com o trauma não só das mortes, mas decorrente do fato de que a morte não foi devidamente respeitada e valorizada no laço social.
É por isso que o Museu das Memórias (In)Possíveis, do Instituto da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, e o Coletivo Testemunhos da Pandemia se uniram para não apenas arquivar, mas deixar inscrever a dor de quem amou, cuidou, perdeu, foi desrespeitado, foi ridicularizado no seu sofrimento. Isso porque a tarefa que nos concerne é justamente aquela tocada pelo poder da palavra. E porque acreditamos na possibilidade de construção de um laço social diferente daquele no qual nos vimos amarrados, capturados e presos, asfixiados.
Procurando, portanto, pelas vias de construção de laços de justiça social, as duas instituições organizaram uma primeira conversa pública em 2021. Após escutarmos por alguns meses as memórias da psicanalista Karina Blom a respeito da sua atuação na linha de frente da saúde pública na época mais terrível da pandemia, realizamos com ela uma apresentação aberta do seu testemunho. O resultado desse encontro pode ser acessado no canal do YouTube do Museu das Memórias (In)Possíveis. Trata-se de um trabalho amparado pela ética psicanalítica e inspirado em políticas públicas e sociais que antecederam os nossos projetos e os inspiraram, como, por exemplo, as Clínicas do Testemunho, envolvidas com a escuta das atrocidades praticadas pelas ditaduras civis-militares no século 20 no Brasil.
A partir dessa primeira escuta, lançamos um formulário eletrônico para que todos os que desejassem pudessem registrar seus testemunhos da forma que melhor lhes aprouvesse, seja com textos longos ou curtos, com vídeos, fotos, desenhos e imagens em geral. As respostas têm sido emocionantes.
E é seguindo esse caminho que, neste sábado, com um misto de tristeza e alegria, certamente comovidos, lançaremos a Coleção Testemunhos da Pandemia de Covid-19. Então, além de agradecermos àqueles que contribuíram para construção dessa coleção, que confiaram em seus materiais pessoais e vitais e os fizeram chegar a nós, aproveitamos também para dizer que se trata de um espaço que seguirá aberto para quem desejar contribuir. Sabemos da imensa responsabilidade que nos cabe e dos cuidados necessários que esses materiais exigem.
Nosso trabalho é justamente contribuir para nos tornarmos uma sociedade responsável por eles.
Testemunhos da Pandemia de Covid-19
O lançamento ocorre neste sábado (11/3), às 11h, na sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), que fica na Rua Faria Santos, 258. Haverá transmissão pela plataforma Zoom para acompanhamento online. Inscrições via appoa@appoa.org.br. Outras informações em museu.appoa.org.br.