Mais de 20 mil jovens partiram do Brasil para lutar com os aliados na Segunda Guerra Mundial. Em dado momento, eles se viram em farrapos: calças e camisas rasgadas, botas furadas e casacos insuficientes amplificavam as dificuldades de um confronto que matou cerca de 500 combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Foi então que o programa de maior audiência de rádio no país realizou uma contribuição efetiva. Aproveitando seu alcance, o Repórter Esso, síntese do que se tornou o radiojornalismo brasileiro, montou uma campanha para arrecadar roupas aos combatentes.
— É das notícias que não ganharam muita visibilidade, mas mostra a proximidade com a população — avalia o professor Luciano Klöckner, autor do livro O Repórter Esso, a Síntese Radiofônica Mundial que Fez História (AGE, 2011).
Ouça a reportagem, os depoimentos e as narrações históricas
A radiotelefonia, como era chamada nos primórdios, alcança um século de sua primeira demonstração pública expressiva neste dia 7. Nessa data, em setembro de 1922, do Morro do Corcovado, no Rio de Janeiro, foi irradiado o discurso do presidente da República Epitácio Pessoa. O fato entrou para a história como a transmissão oficial pioneira do rádio no país. Para marcar a efeméride, GZH recupera lembranças de quem vive ou viveu entre os escaninhos de uma das concessões públicas mais democráticas do mundo – pelas palavras de Edgard Roquette-Pinto, cientista presente no lançamento das transmissões e criador da primeira emissora não amadora, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro:
— O rádio é o jornal de quem não sabe ler, é o mestre de quem não pode ir à escola, o divertimento gratuito do pobre, o animador de novas esperanças, o consolador do enfermo, o guia dos sãos, desde que o realizem com espírito altruísta e elevado.
Mas vale ressaltar: o rádio como um propulsor de vozes assustou testemunhas duas décadas antes, em 16 de julho de 1899. Graças ao padre e cientista gaúcho Landell de Moura.
— Imagina um padre da Igreja Católica dizendo que pode transmitir voz humana a distância. Ele é perseguido, chamado de bruxo e tem equipamentos destruídos, acusado de ter um pacto com o demônio — afirma o professor do Núcleo de Estudos de Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luiz Artur Ferraretto.
A demonstração de Landell ocorreu em São Paulo e foi acompanhada por curiosos, empresários e pela imprensa. No entanto, terminou subvalorizada por falta de investimento público em ciência — crítica corroborada pelo membro da primeira direção da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), José de Almeida Castro:
— Nosso país não tem tradição de preservar a memória nacional. Por isso, as controvérsias vão sempre existir.
Na Itália, nesse mesmo período, o cientista Guglielmo Marconi demonstrou um equipamento com finalidade idêntica. Porém, de acordo com o biógrafo Hamilton Almeida, autor de Padre Landell de Moura, um Herói Sem Glória (Record, 2006), faltava ao europeu algo preponderante: seu aparelho emitia apenas sinais em código Morse.
— Não vemos problema nenhum em comemorar cem anos em 2022, desde que se comemore certo. Não são os cem anos do rádio, mas os cem anos da primeira grande demonstração pública do rádio — reitera Ferraretto, ao citar testes e criação de rádios-clube precursoras, como a Rádio Clube de Pernambuco, em 1919.
Testemunhos da história
Acompanhado por repórteres de rádio que se mantinham de plantão em frente à sede do governo, o suicídio de Getúlio Vargas integra a lista dos mais inesquecíveis acontecimentos do Brasil. Mexe, até hoje, com os sentimentos de quem recorda a história — ou dela fez parte. Em agosto de 1954, quando o presidente da República deu um tiro contra o próprio peito, o apresentador Léo Batista tinha 22 anos. Da redação da Rádio Globo, foi ele quem abriu a linha para informar o inesperado desfecho do político de São Borja.
— Disseram: “Vai pro estúdio e improvisa”. Foi assim: “Atenção! Atenção! Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Vargas. Repito, acaba de se suicidar...”— relembra o próprio, em entrevista a GZH, interrompendo a conversa devido à emoção das recordações:
—Fico emocionado. Entrei para a história sem querer.
Conversar sobre radiojornalismo com Léo Batista é como folhear um almanaque. Garoto, ele ouvia a BBC de Londres, emissoras da Alemanha ou qualquer estação captada pelas ondas curtas — que, apesar do nome, alcançam longas distâncias. Nos anos 1940, o flerte com o rádio se converteu em namoro, na praça de Cordeirópolis, sua cidade natal, a 160 quilômetros da capital paulista.
— Sonhava, “um dia vou me meter numa aventura de rádio”. O organizador me deu o microfone, empostei a voz e comecei a ler os anúncios — diz.
Entre as recordações de toda a longa carreira, que prossegue até hoje, aos 90 anos de idade, o fato mais marcante, segundo ele próprio, foi o ocorrido em 1954.
— Getúlio falou para os repórteres: “Senhores, estou cansado, gostaria de me retirar e descansar”. O presidente subiu e logo se ouviu o barulho do disparo. O repórter gritou pela linha que tinha visto o corpo, a arma, e eu fui para o ar. O Heron Domingues, no Repórter Esso, só noticiou uns 10 ou 15 minutos depois. Levou o furo da Rádio Globo — lembra Léo Batista.
Chacrinha, Faustão, Paulo Gracindo, Inezita Barroso e outros tantos nomes — impossíveis de serem listados sem alguma injustiça nas linhas a seguir —, surgiram pela “latinha”. Cid Moreira, outro nome lendário das comunicações ao longo deste século, conheceu boa parte desses astros, que, assim como ele, traçaram caminho rumo à televisão. Os amigos Orlando Drummond, Grande Otelo e Chico Anísio começaram no rádio, enumera com carinho. Se vivos estivessem, poderiam ser colegas no seu mais recente desafio: uma estação online, criada na pandemia.
— O rádio terá sempre espaço na vida das pessoas — diz Cid Moreira, 95 anos de idade.
— Lembro quando falei ao microfone pela primeira vez. Fiquei com a garganta seca. A voz sumiu. Fiquei tão nervoso que as minhas mãos começaram a suar. Pensei que estava tendo um ataque cardíaco. Titubeando, com vários erros e com a voz insegura, aceitei fazer o teste. Fui contratado como locutor — acrescenta.
O Repórter Esso, que documentou a campanha dos soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial, surgiu justamente para atualizar as notícias desse combate. A partir de 1941, a síntese noticiosa cumpriu a missão de informar, em cinco minutos, os fatos da guerra, resumindo a edição em 13 a 15 notícias curtas.
As pessoas esperavam as notícias serem dadas no Repórter Esso para ter certeza se eram reais.
LUCIANO KLÖCKNER
autor do livro 'O Repórter Esso, a Síntese Radiofônica Mundial que Fez História'
O Esso rompeu o costume de se ler no ar os longos artigos publicados nos jornais.
— Foi o primeiro a usar o lide (resumir, nas primeiras linhas, o essencial da notícia). Representa uma troca do padrão francês, mais focado na opinião e na polêmica, pelo padrão dos EUA, objetivo e informativo — complementa o jornalista e doutor em Ciências Sociais Maikio Guimarães.
Era um “produto importado”, pertencente à subsidiária da petroleira norte-americana Standard Oil Company of Brazil. Começou veiculado pela Rádio Nacional, com alcance em todo o território e líder nas pesquisas junto ao público. Redigidas nos EUA, as notas chegavam ao Brasil por telegramas em código Morse, traduzidas do espanhol antes de entregues aos locutores. Tinha dois slogans populares: “Testemunha ocular da história” e “O primeiro a dar as últimas”.
— As pessoas esperavam as notícias serem dadas no Repórter Esso para ter certeza se eram reais — sintetiza Luciano Klöckner.
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) recuperou um manual de apresentação narrado por Heron Domingues, voz do Esso de 1944 a 1962. Consta em um trecho: “A saudação aos ouvintes deve ser feita com otimismo, voz clara e sem qualquer sinal de sono. Há necessidade de que, neste primeiro horário de nosso boletim, o ouvinte seja acordado pela voz alegre, firme e pontual do Repórter Esso”.
Domingues alertava para a necessidade de evitar o que chamou de “um estilo de camelô”: “Uma das regras é a ausência de comercialismo na voz do locutor. Está provado que o estilo vulgar da leitura de anúncios pelo rádio desmoralizou o chamado texto avulso. O ouvinte recebe com indiferença e não toma conhecimento dele”.
Primórdios do rádio no RS
O rádio gaúcho tem outro ano fundamental na construção de suas bases históricas: 1924. Foi quando Porto Alegre inaugurou a Rádio Sociedade Rio-Grandense, com 300 sócios. A Gaúcha, líder de audiência no Rio Grande do Sul há mais de sete anos ininterruptos, surgiu logo depois, em 1927, também com o carimbo “rádio sociedade” e parte do quadro formado por integrantes da breve experiência da Rio-Grandense. O primeiro locutor da nova emissora foi Bolivar Carneiro da Fontoura, o Duque de Antena. A estreia foi reconstituída em entrevista à Flávio Alcaraz Gomes em 1972, ao vivo na Rádio Guaíba:
— Lembro como se fosse hoje: “Alô, alô, senhores ouvintes. Aqui está falando PQG, Rádio Sociedade Gaúcha. Solicitamos empenhadamente a todos aqueles que estão ouvindo nossas transmissões, que façam um grande favor de escrever contando como estão ouvindo. Hoje é a primeira vez que ela está no ar".
Do primeiro estúdio, no Grande Hotel, Centro Histórico da Capital, a Gaúcha migrou por vários endereços até chegar à esquina das avenidas Ipiranga e Erico Verissimo, na Azenha. Em grande parte dessa história, a forma do Repórter Esso era repetida na síntese noticiosa mais tradicional da emissora — o Correspondente, cujo nome teve, ao longo de diversos períodos, a complementação com a marca de seu patrocinador.
Também a Guaíba possuía o seu Correspondente. E, nesse caso, mais do que o parceiro comercial, entrou para a história o seu principal apresentador, Milton Ferreti Jung, recorde à frente do mesmo noticiário no país — de 1964 a 2014.
Além de comandar o noticioso, Jung narrava partidas de futebol, e pelas jornadas esportivas teve a sorte — ou destino — que atinge poucas pessoas: trabalhar com o filho quando este era repórter de campo.
Lembro quando falei ao microfone pela primeira vez. Fiquei com a garganta seca. A voz sumiu. Fiquei tão nervoso que as minhas mãos começaram a suar. Pensei que estava tendo um ataque cardíaco.
CID MOREIRA
— Lembrar dessas histórias vai me fazer chorar, hein? — alerta Milton Jung Jr., direto dos estúdios da Rádio CBN, em São Paulo, onde atua desde 1998.
Jung Jr. acompanhava o pai no trabalho desde criança.
— Um dia, o pai me pegou pela mão e me colocou ao lado dele enquanto lia o noticiário. Eu ficava em silêncio nos 10 minutos daquela narrativa, olhando e pensando: “Um dia quero trabalhar nesse microfone” — recorda.
Âncora do Jornal da CBN, também inspirado no Repórter Esso, Jung Jr. passou do esporte ao jornalismo geral, caminho semelhante ao de um profissional que muito o influenciou: Armindo Antônio Ranzolin, que por períodos distintos foi diretor de ambos departamentos.
— Ranzolin foi uma figura genial. Acredito que eles, meu pai e o Ranzolin, não morrem enquanto continuarmos contando as histórias deles — afirma Jung.
Milton Ferreti Jung, José Aldair, Antônio Carlos Niederauer e Gilberto Verardi, cada qual no seu tempo, abriram caminhos para Domingos Martins Sobrinho, 70 anos. O profissional é conhecido como “A Voz da Rádio Gaúcha”, uma espécie de mestre de cerimônias do apresentador que vem a seguir. Em meio século de carreira, o santa-mariense ancorou programas e os Correspondentes — no da Guaíba, substituiu o locutor às pressas, no primeiro susto de que tem memória.
— Tremia que nem vara verde. Eu disse: “Me dá o noticiário o quanto antes, preciso ler”. Dei algumas gaguejadas e erradas, como é de praxe fazer algo pela primeira vez. Mas tremer é bom, mostra responsabilidade com o microfone — afirma Domingos.
Narradores esportivos como Jung, Ranzolin e Pedro Ernesto Denardin conduziram a emoção de gaúchos e brasileiros, pelo carro, ao lado da família ou nas arquibancadas. Das glórias aos momentos de derrocada, acompanharam títulos e rebaixamentos, marcaram trunfos de jogadores e técnicos, iludiram torcedores em seus discursos inflamados, como se os atletas tivessem a capacidade de pô-los em prática.
“Se Baggio errar, não precisa mais cobrar” – foi uma das falas “obedecidas” pelo jogador italiano no pênalti desperdiçado que deu o tetracampeonato mundial à Seleção Brasileira em 1994.
A referência à Ranzolin vai além do profissional que encantou nos microfones com a saudação “Alô, amigos!”.
— Era um chefe que se preocupava com o funcionário, tratava sempre de uma forma humana — declarou o apresentador Antônio Carlos Macedo, no dia 17 do mês passado, quando Ranzolin morreu.
Ranzolin trabalhou por 22 anos na Gaúcha — a carreira também incluiu períodos na Farroupilha, na Guaíba e na TV Piratini. Certa noite de sábado, saiu de casa pelo bairro Moinhos de Vento, quando o colega radialista e deputado estadual José Antônio Daudt foi baleado, em 1988.
— Talvez já seja a última informação que vou transmitir aqui do HPS: o corpo de José Antônio Daudt foi removido agora para o Instituto Médico Legal — noticiou, com pesar evidente, em um momento histórico das comunicações, da política e da polícia no Estado.
Daudt havia chegado em casa por volta das 22h20min. Estacionou seu Monza, atravessou a rua e, antes de entrar no condomínio, caiu no chão. Socorrido, morreu pouco depois da meia-noite. Ranzolin dedicou tempo à investigação e cobranças públicas por Justiça, mas ninguém jamais foi condenado pelo assassinato.
A febre do auditório
Quando guri, Maurício Sirotsky Sobrinho era ouvinte assíduo da Rádio Nacional e, decerto imaginando o que lhe esperava anos à frente, imitava seus locutores com uma lata presa a um cabo de vassoura. Três décadas depois, já atuando na Farroupilha, tornou-se animador do Programa Maurício Sobrinho. De quadros de humor a concurso de calouros, o talk show lotou incontáveis vezes o Cine Castelo, na Avenida da Azenha, na Capital. Alçou ao estrelato nomes da MPB, inclusive uma tal “pimentinha”: Elis Regina.
Empreendedor, Sirotsky adquiriu a Rádio Gaúcha e criou o Grupo RBS – mas não deixou para o ostracismo sua experiência em auditório. Na mesma Farroupilha, Gugu Streit copiou a ideia e levou ao ar, a partir de 1999, o Domingo Show. Encheu o palco do Auditório Araújo Vianna de convidados como Família Lima, Jerry Adriani, Paulo Ricardo, José Augusto e Sampa Crew. Revelou MC Jean Paul e a dupla Lucas e Felipe. O lançamento do Diário Gaúcho também foi promovido no auditório.
— Li muito sobre o programa do Maurício Sirotsky e pensei: “Vamos tentar resgatar o que ele fez”. Levamos 3 mil, 4 mil pessoas ao Araújo Vianna, onde o Maurício também se apresentou — compara Streit.
Jornaleiro pela manhã, office-boy à tarde, Streit entregava laudas aos radialistas da Caldas Júnior. O contato com o radinho de pilhas foi aleatório:
— Achei um rádio no chão e coloquei na minha bicicletinha. Era a voz do Domingos Martins.
Jornalista e radialista, ele tem hoje 56 anos. Apresenta o Bom Dia, 92, na 92 FM, além de participações no Bom Dia, Rio Grande, da RBS TV.
Outro personagem inesquecível do rádio gaúcho acabou por levar os programas de auditório para a televisão nos anos 1960: Glênio Reis. Nas noites de sábado da Gaúcha ele apresentava o Sem Fronteiras, espaço musical e de bate-papo. Permaneceu à frente do programa até uma semana antes de ser hospitalizado — ele morreria dias depois, em 15 de agosto de 2014.
Tinha muito ouvinte, recebíamos cartas e telefonemas elogiando. As novelas eram a coisa mais importante das rádios. A gente era tão famoso como os das novelas de hoje.
EVA MACEDO PORTO
Estrela da rádio nos anos 1950
Foi logo após a época de ouro dos programas de auditório, ou seja, a partir da década de 1960, que o protagonismo feminino começou a ganhar força no rádio. Ao longo de muitos anos Mary Terezinha dividiu a apresentação do Teixeirinha Amanhece Cantando com seu parceiro musical. E outra mulher se destacava na Gaúcha: Tânia Carvalho. Com uma atração diária que levava seu nome, ela chocou ao tratar de tabus para a sociedade da época.
— Tinha uma sexóloga no programa. Quando falamos “vagina” no rádio, foi um Deus nos acuda — recorda ela.
De risada jovial, prestes a completar 80 anos de idade, Tânia afirma “ter nascido com o rádio ligado” em Bagé, na Fronteira Oeste. Acompanhava tangos e boleros nas rádios El Mundo e Belgrano, ambas de Buenos Aires.
— Passávamos o dia inteiro ouvindo. Acho que é por isso que tenho um espanhol bom — diverte-se.
Passagens pela televisão são mencionadas com carinho, mas são as memórias do rádio que a emocionam — ela continua em atividade, como comentarista do programa Super Sábado.
— Faz parte da minha memória afetiva mais viva até hoje. Lembro bem da casa da minha avó, uma longa varanda com janelas para um jardim, onde tínhamos um aparelho de rádio muito antigo. Escutávamos das primeiras horas da manhã até bem tarde da noite ligados nas radionovelas.
Os folhetins foram outra febre nos anos 1950: contrarregras, sonoplastas, portas batidas para captar o impacto, sapateado no piso do estúdio. A “magia do rádio” criava ambientes cinematográficos apenas com o som. Eva Macedo Porto, 87 anos, lista tais efeitos com um brilho nos olhos. Deixa escapar, baixinho:
— Eu gostaria muito de voltar no tempo, era a minha paixão — diz, em referência aos anos em que foi Jane Macedo, pseudônimo escolhido para o estrelato.
E segue recordando:
— Tinha muito ouvinte, recebíamos cartas e telefonemas elogiando. As novelas eram a coisa mais importante das rádios. A gente era tão famoso como os das novelas de hoje — compara.
Em 8 de março de 2014, foi ao ar o primeiro Correspondente apresentado por uma mulher: Andressa Xavier, atual gerente de programação e jornalismo da Gaúcha, quebrou com a hegemonia masculina de um dos programas mais tradicionais do radialismo local.
O rádio pela Legalidade
No início dos anos 1960, enquanto a tensão geopolítica atingia EUA e União Soviética, a ditadura ensaiava a tomada do poder no Brasil — o que se concretizaria em 1º de abril de 1964. Uma tentativa anterior de golpe ocorrera em 25 de agosto de 1961, quando militares negaram a posse do vice-presidente João Goulart, o Jango, após renúncia de Jânio Quadros.
Para garantir o direito a Jango, o então governador do Estado, Leonel Brizola, confiscou as antenas da Rádio Guaíba. Soldados da Brigada Militar foram enviados à Ilha da Pintada para proteger os transmissores, mantendo no ar, por 13 dias, a Rede da Legalidade. Os sinais da Gaúcha e da Farroupilha passaram pelo mesmo, na sequência. “Em questão de horas, dezenas de emissoras passaram a retransmitir os discursos de Brizola”, escreveu a jornalista Dione Kuhn, hoje editora-chefe de ZH e autora do livro Brizola: Da Legalidade ao Exílio (RBS Publicações, 2004).
As ordens do ministro da guerra eram de bombardear o Palácio do Piratini, caso necessário — já o Comando Militar do Sul, à época 3º Exército, apoiou a iniciativa gaúcha em defesa da Constituição. Pela rádio provisoriamente montada nos porões do palácio, Brizola convocava a população a resistir.
A adoção do parlamentarismo foi a saída para retirar poderes de Jango, e a Legalidade virou “uma página de bronze”, como definiu Brizola em entrevista à Dione, em 2001.
— Teve o efeito de um relâmpago, mas terminou numa página de bronze da história — avaliou o político.
Ainda nos anos 1960, a corrida espacial da Guerra Fria levou Neil Armstrong a Lua, em 20 de julho de 1969. A jornalista de ZH e GZH e apresentadora da Gaúcha Rosane de Oliveira tinha oito anos de idade. Foi pelo rádio que ouviu “a Águia pousou”. “Águia? O locutor explicou que Eagle era o nome da cápsula. Falava em Mar da Tranquilidade. Mar? Mas o mesmo rádio não havia dito que na Lua não havia água?”, ela escreveu, em sua coluna, sobre as memórias do episódio.
Dois anos depois, “pousava” um dos programas mais longínquos da Gaúcha. O Sala de Redação, criado por Cândido Norberto, foi ao ar em 14 de junho de 1971. Ferraretto destaca que, a partir do Sala, a Gaúcha despontou para assumir a liderança no rádio gaúcho.
Norberto reunia debatedores e convidados ilustres, como prefeitos e o governador do Estado, além de presidentes de entidades ligadas ao esporte. O programa, contudo, abrangia mais do que futebol. O âncora caminhava por entre máquinas de escrever dos jornalistas.
— Ao chegar à redação, com a notícia recém-colhida, o repórter muitas vezes era ouvido por Cândido Norberto, até antes de falar com seu editor — diz Ferraretto.
Um gremista fervoroso, inspetor da Polícia Civil, tornou-se fixo no quadro de participantes: Paulo Sant’Ana. “Depois de uma meia hora de conversa, o Cândido Norberto disse: ‘Olha, tu estás convidado para voltar aqui ao programa. Eu gostei muito de conversar contigo’. Dois dias depois, eu voltei e, depois, passei a vir de dois em dois dias como convidado. Mais tarde, passei a vir todos os dias e, ao fim de 20 dias, eu já era pessoa conhecidíssima”, detalhou Paulo Sant’Anna sobre seu começo em sua coluna em ZH.
Em 1978, Ruy Carlos Ostermann passou ao comando da segunda parte do programa, entre 13h e 14h. Além de Ruy e Sant’Anna, a equipe fixa tinha Cid Pinheiro Cabral, Enio Melo, João Nassif, Kenny Braga e Oswaldo Rolla. Desde o último dia 8 de agosto, a atração passou a ter duas horas, das 13h às 15h.
A participação do ouvinte
Em 1985, outro momento marcante do rádio no Rio Grande do Sul: Jayme Copstein assumia um horário desocupado na maioria das rádios: o Gaúcha na Madrugada estreava com o objetivo de recuperar entrevistas veiculadas ao longo do dia. O conteúdo gravado, contudo, se esgotava rapidamente e, pela pouca experiência, o comunicador se via sob uma saia justa: como manter a atração no ar? Decidiu atender ouvintes ao vivo, o que se mostraria um sucesso. “Telefona um sujeito e me pergunta: ‘Como é que se conhece a fêmea do quero-quero?’. ‘Olha, só perguntando ao namorado dela, porque é o único interessado nisso.’ Deu uma polêmica em torno da fêmea do quero-quero! Todo mundo dando palpite. Aí, eu acabei não fazendo mais entrevista com ninguém, e os ouvintes lá, falando, falando...”, recordou, em entrevista ao projeto Vozes do Rádio, da PUCRS.
O Gaúcha na Madrugada teve destaque na prestação de serviços, abordando temas diversos com advogados e outros profissionais. A participação do ouvinte cresceu, também por cartas enviadas à rádio. Para validar o conteúdo, Copstein colocou no ar “o pato”, inspirado em um antigo programa de calouros da Rádio Nacional. “O Pato é um elemento para tirar as pessoas do ar quando elas se tornam inconvenientes. Ou porque diziam palavrão, ou porque faziam ofensa de natureza pessoal, ou então porque falavam sobre futebol, e futebol é uma coisa que se esgota à meia-noite”, explicou, também ao Vozes do Rádio.
Lauro Quadros, comentarista esportivo e membro do Sala de Redação, passou 15 anos equilibrando visões diversas, em temas espinhosos, no Polêmica. No dia 11 de setembro de 2001, o debate foi suspenso, “virando a pauta” para Nova York: ocorria, naquele horário, o ataque às Torres Gêmeas.
Pelas primeiras imagens da TV, Lauro Quadros já havia tido uma ideia do que acontecia:
— Um avião bateu no World Trade Center, em Nova York. É um dia claro, o aeroporto não fica próximo às duas torres. Seria um atentado? — questionou o apresentador.
Ranzolin e Macedo se uniram na cobertura, derrubando intervalos comerciais e acompanhando os desdobramentos pela televisão: quedas das torres, declaração de guerra pelo governo norte-americano, desvio de voos para o Canadá.
O repórter que relatou o atentado, por telefone, também por horas a fio, era um velho conhecido dos funcionários da RBS: Nelson Sirotsky.
— Sensação de pânico total na cidade. Aparentemente, estamos diante de uma das maiores tragédias da história — disse Sirotsky, ao vivo dos EUA.
A consagração do ao vivo
Os testemunhos da história seguiram na Rádio Gaúcha ao longo dos últimos anos – nem que, para isso, fosse preciso transpassar fronteiras. Em 2013, o apresentador Daniel Scola viajou ao Vaticano para acompanhar o conclave que escolheria papa Francisco como o novo pontífice da Igreja Católica. Durante 13 dias, ele transmitiu o Gaúcha Repórter ao vivo da Europa – Milena Schoeller ancorava, em conjunto, dos estúdios de Porto Alegre.
Scola havia estudado um por um dos mais de cem cardeais que concorriam ao cargo. Quando a fumaça se tornou branca, uma multidão ocupou o espaço à frente da Basílica de São Pedro.
— Chovia, fazia frio, e as pessoas rumaram em peso para lá. Ficou quase impossível se mexer. A expectativa era que o novo cardeal aparecesse — diz Scola.
Havia uma lista de favoritos: italiano, norte-americano, canadense e brasileiro – Dom Odilo Scherer era um dos mais especulados para a função. O anúncio de Jorge Mario Bergoglio surpreendeu, e o espanto de Scola ficou evidente.
— Quando foi anunciado “Cardeal Bergoglio”, eu lembrei do meu mapa, com fotos e biografias e disse: ‘É o argentino?’. Puxa vida, todos esperando um cardeal americano, italiano ou brasileiro, não, não. O novo papa é da América Latina, argentino — recorda.
No mesmo ano, mas um pouco antes, um marco das coberturas ao vivo. O dia 27 de janeiro de 2013 foi de redação lotada no terceiro andar do edifício-sede do Grupo RBS. Fato pouco comum em um domingo, quando muitos repórteres e editores estão de folga. O motivo: um incêndio havia deixado 242 mortos na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Estado.
O chefe de reportagem Paulo Rocha, então de plantão, apurava, redigia e apresentava os noticiários da madrugada. O Notícia na Hora Certa das 5h trazia a primeira manchete sobre as chamas na casa noturna, com um número ainda incerto de vítimas.
— Umas 4h, chegou para nós que havia um incêndio. Liguei para todos os contatos, e o único que atendeu foi o Comando Ambiental da Brigada Militar. Disseram que todos estavam atendendo um grave incêndio, com “uns 10 mortos”. Pensei: “Bá, 10 mortos é muito grave” — recorda Rocha.
A troca de mensagens entre jornalistas da Capital e do Interior alertou para hospitais lotados e uma segunda informação: o saldo de mortos já estava em 30.
A programação gravada foi derrubada. Paulo Rocha assumiu a ancoragem, repassando as primeiras informações sobre o caso. Ananda Müller, da recém-criada Gaúcha Santa Maria, telefonou do local e passou a reportar o cenário. Um avião foi fretado com apresentadores, fotógrafos e repórteres, e o fato dominou dias da grade de programação — de emissoras de todo o país e até do Exterior.
Maikio Guimarães editou o então Correspondente Ipiranga exclusivo com notas sobre a tragédia. Teve apoio da editora Rejane Costa e do então estagiário Tiago Boff, autor desta reportagem.
Nos últimos meses, tudo de algum modo mudou — no rádio, nas comunicações e em outras áreas e aspectos da sociedade. A pandemia forçou o isolamento também de âncoras e demais profissionais a partir de 17 de março de 2020. As redações ficaram vazias, e os computadores, desligados. Mas o rádio seguiu, graças a quem persistiu e persistirá fazendo a sua parte, reportando ao vivo, estabelecendo laços com a comunidade, trazendo notícias e entretenimento, enfim, trabalhando para manter aceso o luminoso “NO AR”.