Os primeiros dias da pandemia, em 2020, foram de tensão na família do advogado Miguel Machado Cechin, 55 anos, e da massoterapeuta Cristina Azevedo Cechin, 49 anos. Os filhos, Vitor, 22 anos, e Eduardo, 14, não tinham o costume de passar muito tempo dentro de casa e logo começaram a se bicar.
Miguel preservava o hábito da juventude de andar de bicicleta, enquanto Cristina, menos adepta, mantinha a bike velha na garagem de casa, na zona sul de Porto Alegre. Foi dessa experiência pregressa que a mãe arranjou uma solução para acalmar os ânimos dos guris.
— Por que vocês não vão pedalar? — sugeriu.
O mais velho já tinha sua bicicleta, mas foi necessário comprar uma para o caçula. Miguel e os filhos começaram a pedalar juntos em abril do ano passado. Em seguida, Cristina se uniu ao grupo. Os quatro pegaram gosto e convidaram o sobrinho Pedro Cechin da Silva, 18 anos, filho da irmã de Miguel. Mas havia um empecilho: ele não sabia andar de bike. O problema foi resolvido quando os tios pagaram aulas com um profissional.
— Mexi com ele: "A dinda não tem dinheiro para te dar um carro, mas umas aulas de bicicleta, dá!" — lembra Cristina.
Com o quinto integrante, a família virou praticamente um grupo de ciclistas. Pedala pela Zona Sul e, às vezes, vai até o aeroporto, na Zona Norte. Não sai de casa sem traçar uma rota e costuma fazer uma parada para um suco e um lanche, o que transforma o exercício em passeio. Os atritos provocados pelo confinamento diminuíram e foram agregadas diferentes lições: de trânsito, de sociedade, de relação familiar.
— Melhorou tudo. Relação de casal, relação dos meninos. Não só pelo exercício, mas por se envolver de outra forma no trânsito. Pedalar em grupo gera muito diálogo, antes e depois. "Viu que tu atravessou sem olhar?", "Viu que tu freou e raspou o pneu de trás?". A nossa família entrou num canal de diálogo que não tínhamos antes. A gente passou a conversar mais — conta Miguel.
Uma saidinha
A bicicleta virou uma forma de refúgio na pandemia. De acordo com a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), o aumento nas vendas em 2020 foi de 50% em relação a 2019. A Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC) não tem dados sobre a circulação das bikes pelas ruas da Capital. No entanto, dados do serviço Bike Poa indicam uma explosão das bicicletas compartilhadas. Foi um aumento de 224% em abril deste ano em comparação com abril do ano passado. De acordo com a empresa TemBici, que opera as 410 bikes disponíveis em 41 estações da cidade, o recorde diário foi alcançado há poucos dias: em 1º de maio, um sábado de sol, foram solicitadas 4.208 viagens.
Lojas consultadas pela reportagem de GZH também confirmaram que o ano em que o coronavírus passou a fazer parte da vida das pessoas foi um ano de muita procura, seja por bicicleta nova, seja por um reparo na antiga.
— Os casais vêm e levam duas, uma para cada um. As pessoas precisam sair de casa, se não, enlouquecem — diz Solange Venturini, proprietária da loja Sunset Bikes, no Bairro Cidade Baixa, zona central de Porto Alegre.
Os clientes costumam citar dois motivos: praticar uma atividade física que não seja em ambiente fechado e tirar os pequenos de casa.
— Tenho visto famílias em que o filho não sabe andar, aprende, adquire a bike. Aí, pai e mãe compram uma bike para fazer parte do contexto. Isso sempre aconteceu, mas aumentou com a pandemia, com as crianças ficando mais em casa. Os pais querem uma atividade que tire os filhos de casa e, ao mesmo tempo, que una a família — diz Everson Ribas, da loja Dudu Bike, no Bairro Tristeza, zona sul da Capital.
Professor de planejamento urbano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do grupo de pesquisa Saúde Urbana, Ambiente e Desigualdades, Júlio Celso Vargas notou o aumento da circulação das bicicletas, inclusive as compartilhadas. Segundo ele, as estações estão "sempre vazias".
— A galera não está indo para a balada e se pergunta como vai fazer para sair de casa. É uma alternativa. As pessoas descobriram que pode ser divertido. Os mais velhos associam sempre a bicicleta com a infância, com uma coisa infantil, de lazer, e começaram a se dar conta que também podem ter essa alegria meio boba.
Se antigamente era um meio de transporte barato com adesão pelas classes mais baixas, agora passa a ser item que completa um estilo de vida.
— Na minha vizinhança, chegou uma entrega da loja. Uma TV de várias polegadas e uma bicicleta. É um pacote de consumo, de estilo de vida, que mistura esses dois objetos. A bike passou a integrar essa cesta de desejos — diz o professor.
Faz bem para a cabeça também
Coordenadora do curso de Psicologia da Universidade La Salle, em Canoas, Camila Bolzan diz que a bicicleta atende a vários critérios da saúde mental: além do benefício do exercício físico, pedalar recupera o contato com a natureza e faz a pessoa se apropriar da cidade. E integrar o ambiente onde se vive é uma forma de manter-se saudável. Outra observação feita pela psicóloga: essa nova massa de ciclistas criados durante a pandemia pode ter um impacto positivo nas políticas públicas.
— Futuramente, essas pessoas que estão começando a pedalar vão querer mais ciclovias. A cidade vai precisar criar políticas publicas para dar esses espaços seguros. E a criação desses espaços oportuniza saúde mental. É uma relação que as pessoas não se dão conta, mas é uma relação direta — afirma ela.
É lazer, mas também é exercício
Com o abre e fecha das academias, a bicicleta virou garantia de atividade física. Sem ir para a musculação, a professora Paula Brentano, 35 anos, moradora de Gramado, na Serra, acabou retomando o hobby que manteve com o marido, o bancário Tiago Brentano, 40, antes de terem filho, Vincenzo, cinco anos. O convite veio da amiga, Silvia Bertolucci, 36:
— Se eu comprar uma bicicleta nova, tu pedala comigo?
Começaram a passear pelo interior da região das Hortênsias e logo chamaram atenção da vizinha de Paula, Susiane Riffel, 34 anos, que quis se juntar. Os companheiros também ficaram com vontade e engrossam o grupo aos finais de semana. Quando querem fazer das pedaladas uma aventura, cruzam os limites de Canela e Gramado e vão um pouco mais longe, até Nova Petrópolis, Santa Maria do Herval e São Francisco de Paula.
— Escolhemos o pedal porque não ficamos aglomerados, é ao ar livre e uma maneira de estar numa atividade saudável. O ciclismo também melhora muito o cardiorrespiratório. De todos os nossos amigos, só um casal pegou covid. A gente se manteve saudável em toda a pandemia — diz Paula.
Durante a semana, as pedaladas seguem só das gurias, que saem bem cedinho pela manhã, dia sim, dia não, para mexer o corpo. Paula ganhou massa magra e tonificou as pernas. Em casa, pratica ginástica acompanhando aulas virtuais, mas gosta mesmo é do exercício em duas rodas.
— A gente fica "acabado" depois do pedal, mas é gratificante. Posso parar a academia, a aula online, mas não paro mais de andar de bicicleta.
Garantindo a máscara e os equipamentos de proteção específicos para as pedaladas, o trajeto pode ser de longa distância, quase profissional, mas também pode ser meia hora de passeio até a Orla do Guaíba. O que vale é gastar energia para manter corpo e mente sãos.
— Há estudos que sugerem que as pessoas que ficam muito tempo dentro de casa, em home office, o nível de atividades delas despencou tanto que a perda de massa muscular é semelhante às pessoas acamadas no hospital. A pessoa que trabalhava no escritório, ela se levantava, ia pegar o cafezinho, ia para a reunião, saia do prédio para almoçar. Nada mais disso acontece para quem faz home office. Mesmo que seja uma pedalada de uma hora apenas, no final de semana, já está valendo. Não só pelo exercício físico, mas para dar uma "espairecida" — diz o professor de fisiologia do exercício da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Rafael Baptista.
Rigoroso nos cuidados para evitar o coronavírus, a coach Jacqueline Palma, 52 anos, e o desenvolvedor de software Jorge Oleques, 42, não saem para comer nem beber, não vão a festas nem fazem visitas a parentes. O reencontro com a bicicleta foi um jeito de o casal sair um pouco de casa.
— Nesse um ano de pandemia, a gente começou a engordar e a ficar entediado — confessa Jacqueline.
Ela comprou a sua bike há duas semanas semana. No dia seguinte ele foi na mesma loja e levou a sua. O plano é pedalar pelo menos quatro vezes por semana para queimar energia e dissipar o tédio, de preferência juntos, porque é mais seguro. A academia do condomínio eles nem cogitam.
— A gente gosta da liberdade de pedalar com vento na cara — diz ela.
Ao ar livre, mas com cuidados
Não é porque a bicicleta é um exercício ao ar livre que a pessoa não corre risco de se contaminar. Sozinho ou em grupo, é necessário manter as medidas que evitam o contágio pelo coronavírus. Professor de fisiologia do exercício da PUCRS, Rafael Baptista lembra que, numa ciclovia, a pessoa que estiver pedalando na frente, sem máscara, emite gotículas de saliva que serão dirigidas à pessoa de trás. Também há perigo do outro lado: quem vem na direção contrária passa por perto e ainda por cima de frente, e tanto pior se não tiver nada tapando a boca e o nariz.
O exercício físico deixa a pessoa mais ofegante, então o jato de ar que naturalmente sai pelas vias aéreas fica mais intenso e se espalha com facilidade. Por causa disso, distanciamento entre bikes é necessário, além da máscara. Esticar o corpo antes de pular no assento também é importante, principalmente para quem vai encarar a bike como uma atividade física.
— Alongar sempre. Pelo menos 20 segundos cada exercício, dando maior importância aos membros inferiores. Alongar musculatura da panturrilha, parte anterior da coxa, posterior da coxa, glúteos. Também é importante alongar lombar e cervical — lembra o professor.
E não pode esquecer de passar protetor solar, levar sua própria garrafinha de água para manter a hidratação e, como o inverno se aproxima, amarrar um agasalho na cintura.
Ficou inspirado?
Capacete, luvas e um sinalizador para andar à noite são acessórios fundamentais para quem vai começar a pedalar ou retomar a relação com a bike parada na garagem. Quem não tiver uma, pode escolher entre as de entrada, para iniciantes, ou um modelo mais avançado.
— As de entrada servem para pequenos passeios. As mais esportivas são as mountain bike. Pode passear, fazer aventuras, percorrer mais distância e inclusive usar para prática de esporte. É bem versátil — diz Everson Ribas, da loja Dudu Bike.
A reportagem consultou três lojas para apresentar uma média de preços. As bicicletas de entrada variam entre R$ 1 mil e R$ 1,9 mil, enquanto as esportivas custam a partir de R$ 3 mil. Capacetes saem por R$ 149; as luvas custam a partir de R$ 69, e os sinalizadores, a partir de R$ 149.