Por Otávio Augusto Winck Nunes
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e do Instituto Appoa – Clnica, Intervenção e Pesquisa em Psicanálise
“Dizem que sou louco
por pensar assim...
Mas louco é quem me diz...”
(Arnaldo Batista e Rita Lee)
A psicanálise sempre se valeu das artes, expressão da cultura, como disparadora de questões essências para problematizar a vida cotidiana. O caráter provocativo e subversivo, de uma e de outra, inclui linhas de fuga que se contrapõem a lógicas de pensamento que tenderiam a um esgotamento, ou ainda, a um confinamento das ideias.
Em 1972, auge da ditadura militar, um dos períodos mais sombrios desse país, Os Mutantes gravaram Balada do Louco (de Arnaldo Batista e Rita Lee), canção que contempla com ironia e irreverência uma discussão que não perde a atualidade.
Uma questão difícil de ser respondida pela imprecisão que qualquer argumento poderia sustentar: o que é “normal” em saúde mental? A canção dos Mutantes ajuda a pensar esse ponto, pois inverte a afirmação acéfala: afinal, quem é o louco? É aquele que rompe com os ideais estabelecidos? Ou é aquele que comunga e aceita a padronização? Seria possível fazer distinção clara a partir de que critérios? Uma advertência: não se trata de fazer tão simplesmente um elogio à loucura, mas, sim, destacar que o sofrimento – poderíamos dizer, as paixões da alma – é condição dos humanos, mesmo para os muito bem-comportados.
Não seria esse um dos dilemas ou paradoxos da vida psíquica? Por mais que expressemos uma aparente adaptação a vida social, a esfera do conflito psíquico, o mal-estar, seguindo Freud, estará sempre presente. A dinâmica do inconsciente não está excluída da sua expressão, pelo contrário, ela permanece, mesmo que sua representação encontre aceitação.
Disse Freud, em 1917: “O eu não é senhor em sua casa”, situando, dessa forma, que, desde a psicanálise, o “eu” como instância psíquica, supostamente estável ao longo do tempo, não seria capaz de conter, menos ainda de garantir, que as diferentes determinações inconscientes se expressem e façam parte da vida dos sujeitos.
Assim, quando ocorre um “desvio” em relação à “norma”, ele se faz sentir e se faz ver a todo momento. Designados como sintomas aparecem os sinais do que escapa ao controle, do que fugiria ao padronizado, mais propriamente do que não funciona nas nossas vidas, e, por isso, produz sofrimento, não encontrando aceitação.
Foi nessa dimensão que Freud deu a sua mais profunda importância a eles. Não brincava ou ofendia, menos ainda julgava seus pacientes por eles se apresentarem com falhas, imperfeições e inadaptações que, na verdade, todos temos.
A medida disso foi onde Freud acentuou que se encontra o mais singular, o mais representativo de cada um de nós. Com maior acesso ao conhecimento que tivemos, muitos termos que serviam para designar as formas de adoecimento psíquico, seus sintomas e diagnósticos começaram a ter um uso corriqueiro muito mais acentuado. Se, por um lado, é uma inscrição importante na cultura, por outro, revelou, também, uma outra faceta, bem mais danosa.
Loucos, bipolares, histéricas, obsessivos passaram a ser significantes que são usados como insultos. Produzindo e justificando diferentes tipos de segregação. Como vivemos pautados por ideais, a utilização desses termos serve para desqualificar aquele que seria seu portador, culpando-o pelo sofrimento psíquico que muitas vezes nem saiba que lhe acomete.
Quando Os Mutantes valorizaram a palavra “louco”, eles deram um outro estatuto, um outro lugar ao que era visto como desviante. Brincaram com os significantes tão caros à nossa cultura: normal, feliz, bonito e famoso (e nem havia redes sociais naquela época!). Enobreceram o que era – e é – visto como sem valor e sem dignidade.
A psicanálise, pari passu à arte, quando convida alguém a falar do seu mal-estar, restitui ao sujeito o direito dar nome ao que lhe faz sofrer. De certa forma, como Os Mutantes, cura o uso da palavra, não o “louco”. O que não é pouco!