Por Éder da Silveira
Historiador e professor da UFCSPA
Toda a minha vida escolar se deu em uma escola pública estadual. Entre outras formas de estranhamento, ainda lembro a surpresa causada pelo calendário de festividades nacionais e regionais, totalmente estranhas ao meu ambiente doméstico. Aos poucos, professoras e professores, cuja vida profissional transcorreu sob o tacão da ditadura civil-militar que controlou o país entre 1964 e 1985, se esforçavam para dar uma “tenência” cívica e religiosa ao menino que pouco sabia dessas coisas.
A escola tentava cumprir seu papel de criadora de um senso ufanista de nacionalidade e de gauchismo. Em setembro, éramos obrigados a desfilar no dia 7. Mês da Semana Farroupilha, época de ir à escola fantasiado de estancieiro, de aprender a dança do pezinho e sobre a “bravura dos Farrapos”. Ao longo dos anos 1980, na medida em que nos afastávamos da sombra da ditadura, essas festividades ufanistas foram se tornando algo distante.
Saltava-me aos olhos um caráter postiço das comemorações farroupilhas. Para nós, nascidos nas décadas de 1970 e 80, nada poderia ser mais distante da realidade do que aquilo. Por que comemorar de uma forma que nos parecia absolutamente artificial algo que nossas famílias viviam, no seu dia a dia, de forma completamente diversa? Os nossos avós e pais, em sua maioria com fortes vínculos com o mundo rural, não usavam pilcha. Éramos gaúchos e não conseguíamos nos ver representados pela imagem acrítica desses momentos de celebração.
Era na passagem de gerações que estava uma boa parte da explicação. As comemorações, oficiais e reguladas pelo Estado, eram recentes. Começaram com a publicação da Lei nº 4850, de 11 de dezembro de 1964, quando a ditadura civil-militar estava dando seus primeiros passos.
O processo de transformação dos Farrapos em heróis, iniciado pelos historiadores oficiais do levante dos estancieiros gaúchos em setembro de 1835, vinha se consolidando desde a passagem do século 19 ao 20. Versão edulcorada da “gesta Farroupilha” que ganhou muita força com a construção dos CTG’s, em 1948, aliado a todo um trabalho de criação do folclore sulino.
Entendo que a sensação de liberdade do peso do arbítrio e da imposição de uma agenda cultural e educacional excessivamente aferrada aos valores patrióticos, própria do período de 1964 a 1985, permitiu-nos deixar de lado esses festejos. Questionaram-se aspectos importantes do “discurso Farroupilha”. A partir da década de 1970, levas de trabalhos de historiadores lançaram um olhar crítico, fruto de pesquisa sistemática de fontes históricas, sublinhando o caráter elitista do levante Farroupilha. Uma guerra que dizia respeito aos interesses de uma parcela dos estancieiros sulinos, aferrada ao latifúndio escravocrata e rechaçada em diversas regiões do Estado, inclusive por Porto Alegre, que resistiu em defesa aos imperiais e recebeu o título de “Leal e Valorosa”.
A efeméride permite o debate franco de aspectos que a memória oficial e a idealização dos farrapos escamoteia, como a traição de porongos, o racismo, o machismo e a homofobia.
Nas últimas décadas, para o bem e para o mal, o mito do irredentismo gaúcho voltou à baila, servindo de combustível a ideias separatistas. Alguns sinais foram se fazendo notar, como a atitude grosseira das torcidas locais, que passaram a cantar o Hino Rio-Grandense “por cima” do Hino Nacional ou a multiplicação dos adesivos automotivos afirmando que “o Sul é o meu país”. Estranha forma de orgulho local, bem resumida pelo patético slogan “melhor porque é daqui”. Ondas de ufanismo que convergem nas multidões que frequentam o Acampamento Farroupilha, no Parque Mauricio Sirotsky Sobrinho, transformando o lugar em uma espécie de parque temático enlameado, movido a churrasco e música de gosto duvidoso.
O gauchismo, como qualquer discurso identitário, se ampara em uma ideia fantasiosa do próprio passado e de um sentimento de superioridade, tingida de separatismo. A efeméride, no entanto, permite a reivindicação e o debate franco de aspectos que a memória oficial e a idealização dos Farrapos escamoteia, como a traição de Porongos, o racismo, o machismo e a homofobia que marcam o discurso tradicionalista.
Não vejo motivo para festas, mas para uma boa discussão. Comemorar, cuja origem latina – commemorare – significa trazer à memória, é direito de expressiva fração da população gaúcha, que deve fazer lembrar a contribuição dos seus antepassados à construção deste Estado. Há uma memória em disputa, cuja história a construir é bastante diversa daquela, contada e recontada, dos heróis Farroupilhas.