- Justiça gaúcha reconhece duas mulheres como mães biológicas
- Uma das mães é mulher trans e concebeu o filho antes da transição para o gênero feminino
- Decisão ilustra adaptação do Judiciário às mudanças na sociedade
A Justiça do Rio Grande do Sul decidiu em 18 de agosto que duas mulheres sejam reconhecidas como mães biológicas de uma criança. Uma delas é trans e, até a sentença, não era reconhecida como genitora de sangue, apesar de ter participado da concepção do filho e de a criança ter seu DNA.
A decisão, do juiz Nilton Tavares da Silva, da 5ª Vara de Família do Foro Central de Porto Alegre, não tem força de lei nem obriga outros magistrados a adotarem interpretação igual, mas poderá ser usada como base em sentenças futuras. Advogados especializados vêm apontando que a decisão é inédita no Brasil.
No pedido à Justiça gaúcha, as mães solicitaram a mudança do registro de nascimento do filho – no documento, uma das mães aparecia como mãe socioafetiva (adotiva), apesar de ser mãe biológica. À época, ambas aceitaram, a contragosto, registrá-lo assim para incluir o filho no plano de saúde.
A bióloga e mestranda em sociologia Ágata Vieira Mostardeiro, 27 anos, moradora de Canoas, na Região Metropolitana, conheceu a ex-companheira, que pediu à reportagem para não ser identificada, quando ainda era do sexo masculino.
Após a concepção de Bento, hoje com dois anos, e do início da gravidez da então companheira, Ágata começou o tratamento hormonal para transicionar para o gênero feminino e alterou os documentos em cartório para ser reconhecida pelo Estado como mulher. A partir de então, não tinha mais documentos com o antigo nome, masculino.
Apesar da mudança, Ágata foi impedida de aparecer como mãe biológica nos documentos do filho. No hospital, a Declaração de Nascido Vivo, assinada às pressas, apontava Ágata como “companheira” da mãe da criança.
Quando foram a um cartório de Canoas para fazer o registro civil do filho, a instituição afirmou que era necessária uma comprovação de inseminação in vitro, o que não era o caso da família, ou que o documento apontasse que Bento era filho de mãe solteira, conta Ágata.
O Fórum de Canoas concedeu que Ágata aparecesse como mãe biológica desde que fornecesse atestado médico provando que era do sexo masculino antes da concepção (ou seja, que estava fisicamente apta para engravidar a companheira) e que a mãe que gestou Bento declarasse que ambas haviam tido relação sexual. A família considerou as exigências discriminatórias e entrou na Justiça.
— Eu me senti humilhada, lembro que olhei para a advogada sem jeito, e ela falou: "Não, a gente não vai fazer". Isso me deu um conforto. E não fizemos, ninguém mostra o órgão sexual para fazer qualquer registro — diz Ágata.
— Isso é uma afronta à dignidade de pessoas. Ninguém no Brasil precisa mostrar o pênis para registrar o filho. A opção foi não aceitar essas condições por serem muito vexatórias. O Judiciário não pode usar do ineditismo como pano de fundo para preconceito — afirma a advogada Gabriela Souza, que defendeu as mães.
Outras decisões já haviam reconhecido a dupla maternidade de uma criança – como no caso de inseminação artificial –, mas esta sentença é incomum porque reconhece duas mães como genitoras biológicas, sendo que uma é trans.
Nossos direitos sempre foram negados. É sempre uma luta, e muitas vezes a gente pensa que não vai ganhar, mas o Judiciário, sobretudo do Rio Grande do Sul, está bem preparado. Pessoas de fora do país me falaram: que orgulho do Rio Grande do Sul
MARCELLY MALTA LISBOA
Presidente da ONG Igualdade-RS e da Rede Trans Brasil
— Esse caso do Rio Grande do Sul é especial porque quem forneceu o material genético passou pela transição depois da concepção. O parentesco sempre foi biológico, a questão era mais respeitar o gênero — afirma a professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Vivianne Ferreira.
O resultado é consequência direta do entendimento adotado em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que permitiu a pessoas trans trocarem de nome no cartório sem a necessidade de entrar com ação na Justiça.
— A pessoa teve que provar quem é e que identidade tem porque se presume que o natural é ter pai e mãe. A revolta é verem ela como mãe socioafetiva mesmo sendo mãe biológica — pontua Carolina Parisotto, advogada da ONG Igualdade e membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), que celebrou a sentença.
Na decisão, o juiz escreve que “a verdade biológica sempre que possível deve constar no assento de nascimento da criança, pois, como sabido, todo e qualquer ato registral deve primar sempre que possível por retratar a realidade dos fatos”. Ágata afirma que o resultado coroa esforço de anos.
— Foi o fim de um ciclo em que lutamos muito. É uma decisão importante para o meu filho, que vai ter a história contada da forma certa pelos documentos dele, e também para outras pessoas trans que forem registrar seus filhos. Já que o Estado me reconhece como mulher, agora me reconhece como mãe biológica — afirma a bióloga.
O resultado é histórico para a população trans, comenta Marcelly Malta Lisboa, presidente da ONG Igualdade-RS e da Rede Trans Brasil. A instituição emitiu nota louvando a decisão do juiz.
— Nossos direitos sempre foram negados. Agora, são reconhecidos por via judicial ao entender que somos mulheres. É sempre uma luta, e muitas vezes a gente pensa que não vai ganhar, mas o Judiciário, sobretudo do Rio Grande do Sul, está bem preparado. Pessoas de fora do país me falaram: que orgulho do Rio Grande do Sul — comenta Marcelly.