Quando decidiram adotar o primeiro filho, a professora universitária Karen Menger da Silva Guerreiro, 46 anos, e seu marido, o administrador Jader Rosa Guerreiro, 45, instituíram, como premissa, formar uma família sem deixar a ansiedade fugir do controle. O casal de Caxias do Sul foi aceito pelo Judiciário como pretendentes a pais adotivos em dezembro de 2016, e com o passar do tempo a vontade de ver o objetivo concretizado cresceu, exigindo esforço conjunto para não transformar o desejo em frustração.
Serena ao telefone, Karen repete a importância do acompanhamento prévio de assistentes sociais e de psicólogos, tentativa de gerar uma aproximação mais assertiva entre eles e a criança que passará a viver com os moradores da Serra. Deixa escapar, contudo, que não vê a hora de finalmente ter a casa cheia, como a que viveu com os irmãos.
— Sempre foi esse nosso sonho, uma família grande. Tenho três irmãos, meu marido dois. Quando a gente fez o processo, há quatro anos, pensamos em ter um filho de cada vez. Mas com o tempo, a vontade vai aumentando e já discutimos mudar o perfil — admite.
Ao ser apresentada ao aplicativo Adoção, em um encontro virtual que reuniu 77 casais na última segunda-feira (10), data em que a ferramenta completou dois anos de atividade, a docente parece ter renovado as esperanças. A partir da plataforma digital, os candidatos a pais cadastrados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) podem acessar perfis de crianças e adolescentes, assistir vídeos dos jovens e conhecer um pouco mais da história de quem aguarda o chamado para deixar as casas lares de todo o país.
Ao clicar em “manifestar interesse”, o pedido vai ao juiz da comarca correspondente, que inicia o cruzamento dos perfis e a análise do histórico de ambas as partes. A divulgação das imagens, esclarece a juíza-corregedora Nara Cristina Neumann Cano Saraiva, titular da Coordenadoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul (CIJRS), é restrita aos candidatos aprovados em um primeiro processo, rigoroso, anterior à liberação do acesso ao sistema.
— Somente quem já está habilitado no SNA ganha acesso aos perfis. Não é uma exposição, no sentido negativo, e sim uma divulgação com cautela. Uma forma de a criança se apresentar, falar de suas preferências e se aproximar dos pretendentes — diz a magistrada.
O aplicativo foi desenvolvido em conjunto por alunos da PUCRS e pela Direção de Tecnologia da Informação e Comunicação do Tribunal de Justiça (TJ-RS). Conta ainda com a parceria do Ministério Público, que atua como fiscal dos cadastros. Para garantir a segurança dos dados, o público em geral, sem processo de adoção no Judiciário, tem navegação restrita a informações básicas sobre os passos necessários para se tornar um pretendente.
Desde o seu lançamento, 15 adoções foram concretizadas e outras 23 estão em andamento — na aproximação, quando são realizados os primeiros contatos, ou em guarda provisória, período de adaptação com duração de 90 dias, que pode ser prorrogado. O número de adoções mais que triplicou, se comparado com agosto de 2019, aniversário de um ano do app: quatro adoções haviam sido concluídas, e outras nove estavam encaminhadas. Até quarta-feira (12), 3.237 pretendentes estavam cadastrados no Adoção, e havia 116 crianças e adolescentes visíveis aos usuários.
Em meio à pandemia do coronavírus, os primeiros contatos entre os futuros pais e filhos acontecem também com a ajuda da tecnologia, em conversas por vídeos em aplicativos de comunicação.
— A fila de adoção segue respeitada, por ordem da afinidade de perfis e do tempo de quem espera. Ninguém fura a fila, o que ocorre é que crianças e adolescentes que antes tinham mais dificuldade em serem vistos, hoje passam a ser mais procurados. É um divisor de águas — reitera Nara.
Saber mais sobre a personalidade dos candidatos nas apresentações via aplicativo poderá, inclusive, convencer o casal de caxienses a ampliar o perfil de idade pretendido, avalia a professora Karen. No cadastro, ela e o marido demonstram preferência por uma criança de até sete anos, faixa etária que enfrenta ampla concorrência entre os mais de 5 mil gaúchos que buscam formar uma família sem laços sanguíneos.
— Não pensamos em gênero ou raça, e nos dispomos inclusive a viajar para outro Estado a fim de conhecê-lo. Podemos ampliar a idade e até conhecer grupos de irmãos —complementa Karen.
Levantamento realizado pelo TJ aponta que, após a iniciativa ser lançada, houve um salto na flexibilização da idade desejada: a média passou de oito anos para 14, um impacto de extrema relevância para a campanha de incentivo à adoção tardia.
Irmãos foram os primeiros adotados pelo aplicativo
Na zona rural de Porto Alegre residem os primeiros adotados por meio do aplicativo. Durante o período de distanciamento social, Kauã Meotti Zatar, 12 anos, e Kauany Meotti Zatar, 14, passaram a viver na casa dos avós, no bairro Belém Novo.
Quando o processo de adoção foi iniciado, em 2016, Marcelo Zatar, 46 anos, e Suiany Meotti, 39, buscavam um dos perfis mais procurados: uma criança de até dois anos. Ao visualizar as fotos de Kauã e Kauany, ignoraram esses números.
— Hoje eu digo que o fato de eles serem mais velhos mostrou que foi uma decisão muito acertada. A cada nova conquista a gente vibra junto. Talvez com um bebê não teria esse retorno tão imediato — afirma a funcionária pública.
O pai dos adolescentes trabalha em um hospital referência no combate à covid-19 e decidiu, ao lado da esposa, não expor os filhos aos riscos da contaminação pelo coronavírus. Por isso, o amplo espaço na propriedade do extremo-sul da Capital foi outro fator decisivo para deixá-los aos cuidados dos avós Iara Sílvia Meotti, 66 anos, e Sérgio Meotti, 65. A funcionária pública aposentada não consegue expressar qualquer frase sobre os netos sem embargar a voz. A emoção é ampliada quando compara a vida antes da chegada de Kauã e Kauany à família.
— A gente ri, a gente brinca, a gente conversa. São as nossas paixões, bençãos que agradecemos a Deus todos os dias. Não imagino o que estaria fazendo hoje sem eles — diz Iara.
O avô brincalhão, no entanto, deixa de lado a figura amorosa quando os “pestinhas”, como definiu os netos, o desobedecem. O castigo reforça a união da família.
— A punição é não rezarmos de mãos dadas, ritual que fazemos todas as noites — explica, com grande esforço ao finalizar a fala e cobrir o rosto para esconder o choro.
Os adolescentes não tem qualquer queixa dos castigos impostos. Kauany, um pouco mais tímida que o irmão, limita a fala a um desejo grandioso: que todos os amigos do antigo abrigo encontrem um lar semelhante. Kauã parece nem lembrar da vida deixada para trás.
— Parece que a gente nasceu nesta família — finaliza, antes de abraçar os avós de coração.
O app Adoção está disponível gratuitamente para Android e iOS nas lojas do Google Play e da Apple Store.