A pandemia de coronavírus acelerou parte do processo de adoção no país. Na tentativa de desafogar abrigos, juízes têm liberado crianças e adolescentes para ficarem na casa de possíveis pais adotivos ou de madrinhas e padrinhos durante o período de distanciamento social.
Foi o caso da educadora Maria Aparecida Melges, 58, e de Kayky, 10. Os dois se conheceram há cinco anos, quando ela trabalhava no centro de acolhida em que ele vivia. A unidade fechou, e Maria apadrinhou o menino pelo programa da Justiça que permite a convivência esporádica, em períodos como finais de semana e férias.
Quando o vírus começou a se espalhar, perguntaram se ela topava ficar todo o período do distanciamento com ele. Kayky tem asma e está no grupo de risco da covid-19.
— Se eu não aceitasse, iríamos ficar sem poder nos ver. Aí eu perguntei se ele queria e ele disse que sim — conta Maria, que desde o dia 6 de abril divide a casa, na Bela Vista, zona central da capital paulista, com o filho de 27 anos e o afilhado recém-chegado.
Em São Paulo, o governo do Estado prorrogou o período de restrições pela segunda vez, para pelo menos até 10 de maio.
Hiperativo, Kayky tem dificuldade de se concentrar e de ouvir. Mas com Maria se comporta, e já até entendeu a gravidade da pandemia.
—Outro dia entrei no quarto e ele estava rezando: 'obrigada, meu Deus, por eu estar aqui. Estou guardado do coronavírus' — diz Maria.
Se os padrinhos receberam seus afilhados em casa, os futuros pais que estavam na fase de aproximação, quando começam a conviver aos poucos com a criança durante o trâmite da adoção, tiveram suas ações agilizadas.
Os magistrados começaram a liberar as crianças em meados de março, quando a pandemia ganhou força no país, tendo como base o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê o acolhimento em abrigo como exceção.
— Quanto mais conseguirmos esvaziar os centros de acolhida, menor a probabilidade de contaminação —afirma o juiz Iberê de Castro Dias, da Vara da Infância de Guarulhos, na Grande São Paulo.
A maioria, no entanto, segue nos abrigos --que têm alto risco de contaminação por serem moradias coletivas, com rotatividade de cuidadores.
Na sexta-feira (17), o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) divulgou uma série de diretrizes que vão na direção do que os juízes já vinham fazendo.
Segundo o documento, tribunais devem priorizar medidas que permitam a crianças e adolescentes deixar os abrigos e passar a conviver em ambiente familiar, desde que a mudança seja avalizada pela equipe técnica e autorizada por decisão judicial.
O texto também orienta que os serviços de acolhimento passem a funcionar em regime emergencial, com cuidadores residentes e com grupos menores, limitados a dez crianças e adolescentes.
Na última quarta-feira (15), o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Vilas Boas Cueva decidiu a favor de um casal que entrou na Justiça para ficar em definitivo com a criança que passava pelo período de adaptação. Os pais adotivos ressaltaram que a criança tinha problemas respiratórios e seria importante retirá-la do abrigo.
Decisões do tipo, no entanto, não podem ser feitas em massa, afirma o juiz Dias.
— Temos que ouvir a criança, se ela quer. Também dependemos de embasamento dos profissionais, de quais casos têm chance de dar certo.
É que, ao acelerar o trâmite, aumenta também o risco de a adoção dar errado, explica o magistrado. Neste caso, de a criança ser devolvida ao abrigo e o adotante desistir do processo.
As adoções definitivas, no entanto, caíram, e os novos interessados vão esperar ainda mais. Isso porque estão interrompidas as idas de psicólogos e assistentes sociais às casas de possíveis adotantes, para conversas que dão início ao processo, e o Judiciário está de home office.
Em janeiro, foram iniciados 653 processos de adoção no país. Em fevereiro, o número foi reduzido para 593 e, em março, para 475. A média de tempo que os processos levam para serem concluídos é de cerca de oito meses. Em janeiro, foram adotadas definitivamente, no Brasil, 296 crianças e adolescentes; em fevereiro, 308 e no último mês, 210.
De acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, há 34.566 brasileiros com idade entre zero e 18 anos acolhidos no país, em uma rede com 4.279 unidades.