Ao observar o título do novo livro do rabino Nilton Bonder, um porto-alegrense de 62 anos radicado há muito tempo no Rio, o psicanalista Abrão Slavutzky expressou a surpresa que pode ser comum a outros leitores. “No ano de 2020, uma obra sobre a preservação da alegria choca-se com o peso da tristeza”, afirmou o médico e escritor em sua resenha sobre Cabala e a Arte de Preservação da Alegria: Preservando o Gosto, a Sinceridade, a Autenticidade e a Graça, um lançamento da editora Rocco (leia o texto completo clicando aqui).
Sendo assim, de cara o livro – gestado antes e concluído durante a pandemia – já alcança um de seus objetivos: provocar reflexão. No contexto do coronavírus, a alegria é possível?
— Da maneira como estou definindo a alegria, ela é item essencial, junto com a máscara – responde Nilton Bonder, em entrevista por e-mail (leia, clicando aqui, a íntegra). — Não é o sorriso falso, uma máscara debaixo de outra, mas a capacidade emocional de interagir profundamente com a vida como momentos de crise e perigo demandam..
Com orelha assinada pelo humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, o livro é o terceiro da série Reflexos e Refrações, em que Bonder une a Cabala – ensinamentos presentes no judaísmo – a questões cotidianas (os anteriores foram Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça: Lidando com a Lama, o Buraco, o Revés e a Escassez e Cabala e a Arte do Tratamento da Cura: Tratando a Dor, o Sofrimento, a Solidão e o Desespero). No volume sobre a alegria, o rabino lança mão de parábolas, contos e vivências pessoais para falar, por exemplo, sobre como podemos sentir alegria em meio ao luto.
A alegria, nas palavras do rabino, não é um estado ou uma condição, “e sim o próprio sopro da vida” – um dom que nasce com cada um, mas que algumas pessoas não souberam preservar. “Você é alegre ou não é”, diz Bonder.
Um símbolo gaúcho de pessoa alegre, a jornalista Tânia Carvalho, 77 anos, concorda:
— Tem quem olhe para frente, outro, para trás. Tem quem se delicie com um laguinho no meio do campo, outro que ache bobo.
Tânia diz que seu trabalho sempre foi “passar um alto astral” ao público. Entende que a alegria facilita tudo na vida. Ultimamente, ela admite que tem adotado mais o silêncio, refugiando-se na leitura de dois a três livros por semana, como um jeito de se apaziguar “nessa loucura toda”.
— As pessoas estão muito tristes. É preciso contaminá-las com a alegria. Se você não consegue ser alegre, que pelo menos se cerque de pessoas assim. Gente triste que procura gente triste não dá! — vaticina. — Vamos ser mais otimistas, ter esperança no futuro, exercitar um pouquinho de bom humor, demonstrar um pouquinho de alegria por estar vivo, né?!
"Queremos controlar tudo. Até o que não podemos", diz escritor
Sobrevivência tem sido uma palavra-chave neste momento que alguns encaram como um apocalipse lento e silencioso. O “clima de fim do mundo”, como diz a instrutora de yoga Cintia Warmling, 29 anos, parece nos obrigar a ver as coisas apenas em preto e branco. Ela contesta:
— Estamos tendo de encarar que não existe felicidade total nem tristeza total. Estamos tendo de equilibrar, mas isso também não significa ficar nos 50% para cada lado. É uma oscilação.
A pandemia mudou bastante os planos de Cintia para 2020. O local onde daria aulas de yoga foi fechado. Ela chegou a ingressar em uma iniciativa via Instagram, mas percebeu que a exposição não lhe fazia bem (“Fico nervosa”) e deu uma parada em junho.
— Este é um dos ensinamentos da pandemia: a pausa pode ser um pouco maior do que os cinco minutos para o café. Temos de aprender a parar. Na yoga, no momento do relaxamento final, há uma posição chamada savasana, que é a postura do cadáver. Sempre notei a dificuldade das pessoas em completar a savasana, porque as pessoas não param! É hora de uma reconexão literal com o corpo, voltar a entender que somos mortais. No oposto, estão os que seguem achando que são imortais, os que negam os riscos e lotam as calçadas dos bares, as pessoas que não conseguem parar.
O que Cintia diz conversa com o que pensa o escritor e professor de Literatura Jeferson Tenório, autor do romance O Avesso da Pele (Companhia das Letras), que está sendo lançado (leia uma resenha clicando aqui). Para ele, a pandemia mostrou o quanto somos frágeis e nos iludimos.
— Queremos controlar tudo. Até o que não podemos. Acreditamos em saídas mágicas. O cerceamento da liberdade é uma violência. No entanto, não estamos presos. Estamos nos salvando. E sorte daqueles que podem se salvar. É preciso ressignificar a casa. Reconhecer nela os espaços de afetos perdidos.
Conforme Tenório, sentir-se triste é inevitável e necessário:
— E talvez, por isso, a felicidade consista, em última análise, em termos a habilidade de administrar a tristeza. A alegria é minimalista, por isso exige cuidado e atenção com o presente. É o futuro que nos desabriga. Domar nossas expectativas é o que se pode fazer pela felicidade. Olhar para futuro com o eterno pensamento de “quando isso acabar” nos impede de viver o que precisa ser vivido.
"Temos a doce ilusão de ficar só sentindo a emoção boa", diz psicóloga
Controle – ou a fantasia do controle – e expectativas são obstáculos que nós mesmos colocamos à frente, segundo a psicóloga Mara Lins, diretora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi).
As emoções, diz Mara, são como uma forma de comunicação do nosso corpo com o que está acontecendo, dentro e fora de nós. Cada emoção tem um impulso importante. A vergonha, por exemplo, faz a gente se fechar. O medo, se proteger: tem quem lute, quem fuja, quem congele... O nojo faz a gente rechaçar, a raiva, atacar. A culpa ajuda a reparar algo que deu errado. A tristeza convida a se retrair, um momento de parar e avaliar a vida. E a alegria, “prima da felicidade”, tem a função de aproximar e é a que mais traz bem-estar, inclusive biologicamente.
— Vale recapitular — sugere a psicóloga: — Quantas emoções, entre aspas, ruins de sentir, né e só uma, com os seus derivados, boa, né? Eis a grande questão que nos atrapalha enquanto seres humanos pensantes: temos a doce ilusão de ficar só sentindo a emoção boa, a alegria, e isso é impossível.
A vida, reforça Mara, é diferente daquela imagem que a cultura e a sociedade tentam fazer colar. Aquela pressão de que temos de ser ou estar felizes o tempo todo.
— Sou terapeuta de família e, por vezes, ouço pais dizendo: “Eu quero que meu filho seja feliz”. Claro que eles estão falando de bem-estar e de amor, mas chega a me dar um frio na barriga. A gente está passando uma ideia errada. O filho vai ficar com uma expectativa e isso pode não acontecer, porque não somos felizes o tempo todo. Ensinam que a tristeza deve ser evitada, como se coisas ruins não fizessem parte da vida.
É uma imagem falsa da vida, afirma Mara, e isso gera confusão. Expectativas mais realistas podem contribuir para a conquista de um senso de felicidade:
— Tem um conto budista que diz mais ou menos assim: “Se você tem cabras, você vai ter problema de cabras. Se você tem trabalho, vai ter problemas de trabalho. Se você estuda, vai ter problemas de estudo. Se você está em um relacionamento conjugal, vai ter problemas de relacionamento conjugal. Se você é pai, vai ter problemas de pai. Se você é filho, vai ter problemas de filhos”. Temos problemas. Viver é a arte de resolver problemas. É assim. Não existe nada perfeito. Somos imperfeitos.