O rabino Nilton Bonder, porto-alegrense de 62 anos radicado há muito tempo no Rio, está lançando o livro Cabala e a Arte de Preservação da Alegria: Preservando o Gosto, a Sinceridade, a Autenticidade e a Graça (editora Rocco, 144 páginas, R$ 34,90). Gestado antes e concluído durante a pandemia de coronavírus, com orelha assinada pelo humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, o volume é o terceiro da série Reflexos e Refrações, em que Bonder une a Cabala – ensinamentos presentes no judaísmo – a questões cotidianas. Os anteriores foram Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça: Lidando com a Lama, o Buraco, o Revés e a Escassez e Cabala e a Arte do Tratamento da Cura: Tratando a Dor, o Sofrimento, a Solidão e o Desespero. No livro atual, o rabino lança mão de parábolas, contos e vivências pessoais para falar, por exemplo, sobre como podemos sentir alegria em meio ao luto.
A alegria, nas palavras do rabino, não é um estado ou uma condição, “e sim o próprio sopro da vida” – um dom que nasce com cada um, mas que algumas pessoas não souberam preservar. “Você é alegre ou não é”, escreve Bonder, que conceceu por e-mail a seguinte entrevista:
Muita gente confunde alegria com felicidade. Como diferenciá-las?
Trato no livro a alegria como uma das três partes de Eros – o impulso de vida –, juntamente com a ambição e a sexualidade. A ausência de um desses pilares compromete a qualidade da vida. Os três não são sentimentos, mas disposições. Portanto, você não está nunca alegre, você é alegre ou não é, ou soube preservar sua alegria inata ou não soube. A ideia de que a alegria possa ser um estado pressupõe que seja a reação a algo, quando ela é uma essência, um humor. A felicidade, por sua vez, é justamente o contrário: um estado de contentamento. A felicidade depende de interações com a vida, enquanto a alegria independe. Ela é um ânimo, um desejo e uma curiosidade que nascem do âmago do ser vivo.
Para o senhor, a alegria não pode ser fotografada, mas filmada, porque não é o resultado, mas o processo. É isso o que caracteriza, por exemplo, as pessoas que se consideram felizes no trabalho?
Essa cinética da alegria resulta do fato de que ela é infantil, ela salta de interesses constantemente. A tentativa de se apegar a uma alegria que brotou é o início da perda da capacidade de preservá-la. A alegria é momentânea e ela deve estar pronta para buscar uma novidade ou uma nova experiência. Desapegar-se do lugar bom com fé de que existem outros lugares bons é a natureza da alegria. Fotografá-la é tentar percebê-la estática numa posição. Uma criança como modelo alegre não para quieta. Ela larga o brinquedo que antes deslumbrava e logo vai em busca de algo novo. O adulto acha que ela se entediou, mas ela na verdade está neste “filme dinâmico” atrás da alegria, desejo profundo de sentir e vivenciar emoções.
O senhor diz que o ser humano nasce alegre e que alegria não tem causa externa, mas interna. Mas há pessoas que não são alegres, não? O que aconteceu com elas?
Todos nascem alegres. Uma criança que nasce com insuficiências de saúde luta para ficar por aqui. Seu desejo pela vida é a alegria. Por isso o livro não é sobre os alegres e os não alegres, mas entre os que souberam preservar sua alegria inata e os que não conseguem. E isso acontece no processo de formação, quando muitas das continências e dos aprendizados da civilidade estabelecem, ao tentar ensinar sobre o certo e o errado, também o bom e o ruim, o alegre e o triste. Quando conhecemos o conceito de triste, tornamos a alegria o seu contrário. A alegria até então não tinha antônimo. Uma criança ri alegre e chora alegre. Quando ri, há alegria por acolher prazer e sucesso; quando chora, há alegria por acolher limite e derrotas. Ambas experiências são igualmente ricas e potentes do ponto de vista das emoções e das vivências. As pessoas que entristeceram tentaram controlar ou manipular a alegria. Não souberam preservá-la.
Se voltarmos a um normal ainda mais sedentos por comprar e consumir alegrias, sairemos mais insatisfeitos e maior será a quantidade de quinquilharia a poluir o mundo. Há uma profunda conexão entre sustentabilidade e alegria.
No fim de 2019, em entrevista a GaúchaZH, o senhor disse que a ampliação da vida (tanto pela longevidade quanto pelo “monte de cacarecos” que ficamos olhando) provocou uma grande angústia existencial. O quanto o coronavírus veio para bagunçar ainda mais o coreto ou por ordem na casa?
O mundo materialista e capitalista em que vivemos equiparou a alegria ao consumo e ao sucesso. Assim, a epidemia do coronavírus que, além da ameaça à saúde, é um revés às liberdades, às economias e aos projetos, parece um cenário perfeito para a tristeza. Por isso as pessoas acorrem aos shoppings. Elas não estão indo comprar itens de primeira necessidade, estão indo comprar alegrias. Mas a alegria não está nas coisas ou nos resultados, a alegria está nas experiências. Sob este prisma, 2020 é profundamente rico nas vivências internas que estamos conhecendo, nas oportunidades de sentir empatia e novas emoções. E esta será uma prova à nossa civilização e espécie. Se voltarmos a um normal ainda mais sedentos por comprar e consumir alegrias, sairemos mais insatisfeitos e maior será a quantidade de quinquilharia a poluir o mundo. Há uma profunda conexão entre sustentabilidade e alegria. Colocar ordem na casa exige um resgate da verdadeira alegria. Esta não consome, mas se deixa consumir; seu foco não é o controle, mas a interação.
Como, em um período como o da pandemia, preservar a alegria?
Como disse, a alegria independe de fatores externos. Eles demandam atenção, cuidado e proatividade, mas não precisam da tristeza. Muito pelo contrário, a tristeza é uma apatia e uma procrastinação que é muito perigosa em tempos de zelo e aplicação. Tristeza pode funcionar a favor do vírus.
Neste contexto, os alegres são bem-vindos ou podem ser encarados como alienados?
Esta alegria superficial, de acorrer a espaços inseguros ou ir a festas nitidamente interditadas, está mais para o “bobo alegre”, sinônimo de idiotice. Mas da maneira como estou definindo a alegria, ela é item essencial junto com a máscara. Não é o sorriso falso, uma máscara debaixo de outra, mas a capacidade emocional de interagir profundamente com a vida como momentos de crise e perigo demandam.
Como o senhor resumiria para uma criança os quatro tipos de alegria – física, emocional, intelectual e espiritual?
Eu resumiria não para uma criança, porque ela já sabe, mas para a criança já em formação ou para o adulto. No plano físico, reinicie a vida a cada dia; no emocional, fique desperto e não esperto; no intelectual, seja genuíno e não se troque por olhares falsos das expectativas suas e dos outros; e no espiritual, nunca perca a graça que é fazer coisas gratuitamente muito grato.
Há horas em que é importante e salutar manifestar a tristeza, certo? Como encontrar o equilíbrio? Como não deixar a tristeza dominar?
A alegria é sempre positiva e a tristeza, sempre negativa. Mas há momentos onde o sentimento alegre está em viver uma emoção difícil ou com características de tristeza, como em perdas ou frustrações. O alegre, ele apenas vive qualquer emoção plenamente, e o triste se esquiva de vivê-las. Não é um conceito simples e é bastante contraintuitivo. Leia o livro!