A separação entre o ambiente de trabalho e o de casa caiu por terra com a aplicação da medida de distanciamento social. O quarto ou sala, que eram locais de descanso e entretenimento, transformaram-se em escritórios. Manter a concentração para executar as tarefas de trabalho se tornou um desafio, afinal, as possibilidades de distrações são inúmeras. É a cama que convida para uma esticada no sono, é o filho pedindo atenção ou o pet querendo brincar. Para sobreviver a estas pequenas armadilhas diárias, diversas pessoas recorrem à música para se manterem focadas e com bom rendimento no trabalho.
Trabalhar de casa, em situações pontuais, fazia parte da rotina da jornalista Marta Karrer, 23 anos, moradora de Porto Alegre. Contudo, isso não significava que ela gostasse da circunstância. A sensação de baixa produtividade e pouca motivação eram e são frequentes. Além disso, ela relata que o posto de trabalho em casa não é o mais adequado, já que a iluminação do quarto, velocidade da internet e conforto da cadeira não se comparam ao do coworking, no qual trabalha atualmente.
Marta comenta que, no escritório, as pessoas gostavam de conversar umas com as outras e circulavam bastante pelo ambiente. Para sinalizar que ela precisava de foco, a jovem lançava mão de um artifício:
— Colocava meus fones de ouvido, e isso não mudou. Aqui em casa, tenho o mesmo comportamento, porque o vizinho usa a máquina que aspira folhas todas as manhãs, minha mãe trabalha de casa, por chamada de vídeo. Para tentar fugir dessas interferências, dou play em músicas pop e nas trilhas sonoras de musicais bem animadas. Alterno também com jazz e rock, como a da Bordines (banda gaúcha).
Angela Wyse, professora de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Academia Mundial de Ciências, explica que, ao ouvir uma música prazerosa, ativamos o córtex auditivo, mas também outras estruturas do cérebro.
— As canções atuam fortemente na região do hipocampo e córtex cingulado, que são as áreas importantes para o processo de aquisição e consolidação de memórias. O córtex auditivo e as estruturas do cérebro ligadas ao processamento das emoções são estimulados pela música, e isso resulta em um desempenho, temporariamente, melhor dos processos cognitivos, como a aprendizagem, a atenção, a fixação de memória e o raciocínio.
Mais foco e menos ansiedade
Quando o burburinho ficava alto no escritório, Annahy Pedroso, 28 anos, que trabalha como analista fiscal, em Guaíba, sacava da gaveta o par de fones de ouvido. Em casa, esse barulho externo desapareceu, mas ela reconhece que o período de home office está sendo desafiador, por ser algo que ela nunca tinha experienciado antes.
— Achei que seria fácil, mas exige muita disciplina e organização. Então, procurei resgatar alguns hábitos. Assim como tomo café preto todos os dias de manhã, já ligo a caixinha de som assim que sento para trabalhar para conseguir me concentrar melhor. Dou preferência para rock dos anos 1970 e 1980, como Queen.
Além da música, Annahy faz uso de outros elementos sonoros. A pequena fonte elétrica que emite um ruído de água corrente também a auxilia a ter mais foco:
— A música e esses sons mais tranquilizantes me ajudam a manter o foco, mas também melhoram o meu humor. Quando não estou com a caixinha ligada, sinto que eu absorvo mais os problemas do trabalho, fico mais ansiosa e nervosa. A música é minha aliada para os momentos de maior apreensão.
A professora de Bioquímica da UFRGS aponta os motivos desta relação:
— Muitas hipóteses apontam ainda que a música e ruídos suaves diminuem a secreção de cortisol (hormônio responsável pelo controle do estresse), baixa os níveis de ansiedade e melhora os distúrbios de humor — afirma ela citando o artigo Mozart, Música e Medicina, publicado em 2014.
Pesquisadores do Mindlab, instituto britânico que realiza estudos referentes ao impacto que a comunicação exerce sobre o nosso cérebro, fizeram uma descoberta no artigo Um estudo que investiga os efeitos do relaxamento da faixa musical Weightless, publicado em 2012. Foi visto que a canção Weightless, da banda Marconi Union, feita em parceria com a British Academy of Sound Therapy, reduzia em 65% a taxa de ansiedade de pessoas que participaram ao experimento, no qual deveriam resolver um quebra-cabeça considerado difícil. Na lista de músicas relaxantes da pesquisa aparecem Someone Like You, da Adele, Strawberry Swing, do Coldplay, Upside Down, do Jack Johnson, entre outros.
Do silêncio à música contemporânea
Apesar do sistema judiciário ter paralisado suas atividades e suspendido todos os prazos dos processos judiciais até 3 de maio, o advogado Alexandre Pereira, 24 anos, trabalha de casa redigindo petições. O domicílio, que é dividido com os dois irmãos mais novos e os pais, na zona sul da Capital, tem seu grau de barulho. Por isso, os fones estão sempre posicionados nos ouvidos.
— Essa foi minha estratégia. Meus fones são meus companheiros. Dentro de casa, é difícil ter silêncio absoluto, como no escritório. Eu escuto música para realizar minhas atividades desde o colégio. Naquela época, estudava ouvindo música, foi um hábito que adquiri. Escuto muito jazz, música contemporânea, blues e até podcasts, quando a atividade não exige muita concentração. Quando requer foco absoluto, somente o silêncio ajuda — relata.
Julie Wein, doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cantora e compositora, explica que nem todo mundo consegue dar play em um som enquanto trabalha ou estuda, porque são funções que podem competir com o cérebro.
— Se você está lendo um texto e escuta música com letra, a região do cérebro que processa a linguagem será duplamente demandada. Neste caso, é aconselhado ouvir algo instrumental. O ideal é que a música não te distraia da atividade a ser feita, mas que você não fique habituado a ela, por isso, evite canções com ritmo constante. Molde a playlist conforme a tarefa. Para a faxina, é melhor deixar tocar algo mais agitado, porque isso fará com que seu nível de prontidão, ânimo e disponibilidade aumente — destaca.
Era com esse objetivo que o preparador físico Carlinhos Neves, 63 anos, colocava os jogadores do Grêmio para dançar em 1988. Com o aval do técnico Otacílio Gonçalves, Neves trouxe uma nova abordagem para os aquecimentos e pós-jogo do Tricolor.
— Pegava as fitas cassete e colocava as músicas da banda Conexão Japeri, Chopin e Astor Piazzolla para tocar para que eles pudessem relaxar a musculatura, reduzir a frequência cardíaca e tirar a tensão do jogo. Alguns se divertiam mais, até ensaiavam alguns passos. Até hoje, quando encontro o João Antônio (Martins), ele vem dançando na minha direção — diverte-se Neves, que viu o "Grêmio Show", como ficou conhecido na época, ser campeão gaúcho naquele ano.
Existe a playlist perfeita?
A doutora em Neurociências pela UFRJ destaca que as pessoas reagem de maneiras diferentes às canções e que o indicado é que a pessoa teste e monte playlists conforme aquilo com que ela tenha afinidade.
— O que a ciência sabe é que cada pessoa reage de maneira diferente ao estímulo musical. Umas pessoas se sentem motivadas, concentradas, outras ficam atrapalhadas e umas indiferentes. Sabe-se também que o indivíduo precisa gostar do ritmo a ser escolhido e ter o hábito de fazer aquilo — afirma Julie.
Angela faz coro à afirmação:
— Não existe receita de bolo ou fórmula mágica. É preciso se conhecer para saber o que melhor se adapta a você. Mas, além da música, o que faz bem para concentração é ter uma boa noite de sono, intercalar períodos, de duas horas, de alta concentração com intervalos de 10 minutos.
Confira as sugestões de músicas de personalidades gaúchas
Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e colunista de GaúchaZH, ouve algumas determinados estilos de música enquanto escreve. Entre os preferidos estão Steely Dan e Santana, Novos Baianos, Joaquim Calado, um compositor do final de século 19, parceiro da Chiquinha Gonzaga. Os clássicos Concerto para clarinete, de Wolfgang Mozart de Quartetos de cordas, de Ludwig Beethoven também estão lista. Canções, segundo ele, "para a inteligência voar bem acompanhada".
O músico Beto Bruno, ex-vocalista da Cachorro Grande, afirma que usa a música para se ter foco em toda e qualquer atividade cotidiana e que o estilo preferido é o rock dos anos 1950 até o contemporâneo. Contudo, ele passeia por outros nomes renomados da música popular brasileira, como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa e o gaúcho Nei Lisboa.
Miles Davis e John Coltrane não saem dos ouvidos de Alê Garcia, escritor, publicitário e podcaster. Os dois gênios do jazz não estão ali a toa, Garcia acredita que este gênero "é ótimo para concentrar, focar e dar ânimo para o trabalho.