De Friends a Big Bang Theory, boa parte do que a cultura pop mostra sobre amizade é inspirada em um contexto real: seja por interesses ou atividades em comum, a convivência se encarrega de fazer com que algumas pessoas tornem-se mais próximas do que outras, formando grupos de afinidade.
No universo infantil, não é diferente.
Na escola, as crianças se aproximam daquelas que nutrem o mesmo gosto por determinadas coisas, como esportes, personagens ou brincadeiras, ou tenham um comportamento semelhante ao seu – como ser estudioso ou bagunceiro.
Mas, se os agrupamentos são consequência natural das relações sociais, há um tipo que desperta preocupação. São as chamadas panelinhas, grupos fechados que dificultam o ingresso de outras crianças ou as excluem de determinadas atividades.
— Ter um grupo de melhores amigos faz parte do desenvolvimento e é importante para o processo de identificação e descoberta da criança. Mas pode se tornar uma coisa negativa a partir do momento em que se estabelecem turmas muito fechadas, que são excludentes, e quando surge discriminação — avalia a doutora em psicologia clínica e professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Vera Ramirez.
O tipo de exclusão mais comum, segundo Vera, costuma estar relacionado a características físicas e psicológicas. Uma criança fora do padrão, que tenha algum traço exacerbado ou vista-se diferente, por exemplo, pode sofrer discriminação, assim como as mais tímidas ou muito estudiosas. Questões relacionadas à identidade de gênero e etnia também podem fazer com que uma criança torne-se alvo de certos grupos.
Pesquisas sugerem ainda que há comportamentos que podem levar os pequenos a serem rejeitados por seus pares. Eles estão associados, principalmente, a autoritarismo, conduta perturbadora ou agressiva e à não participação, itens que compõem os chamados “indicadores de rejeição”.
Independentemente do que leva à exclusão, suas consequências são negativas e podem se expressar de diferentes formas, muitas vezes indiretas. É comum crianças que estão passando por problemas na escola apresentem mudanças em casa, como dificuldades para dormir, alteração nos hábitos alimentares e dores de cabeça. Não raro se isolam ou inventam desculpas para não ir à escola. Nos casos mais graves, podem desenvolver um quadro de depressão e precisar de ajuda terapêutica.
— Às vezes, as mais tímidas sofrem em silêncio por mais tempo. É importante que a escola e a família estejam atentas. Se a criança estiver muito quieta, devem se aproximar para saber o que está acontecendo — recomenda Vera.
A importância da educação inclusiva
Outra consequência da exclusão no ambiente escolar são as alterações no rendimento em sala de aula. Uma pesquisa realizada pelo governo federal nos anos 2000 indicou que 13% dos alunos do 4º ano do Ensino Fundamental diziam sofrer rejeição de colegas ou professores. O estudo indicou que essas crianças tiveram rendimento, em média, 23% abaixo do que as que não enfrentavam esse tipo de problema no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
— Crianças que se sentem rejeitadas começam a apresentar rendimento diferente, geralmente pior. Algumas pessoas encaram a educação inclusiva como algo relacionado às pessoas com deficiência, mas é uma visão parcial. Ela é abrangente, e envolve questões de gênero, etnia, status econômico e religião — destaca Italo Curcio, coordenador do curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
No entendimento do professor, as escolas devem trabalhar para a formação como um todo. Promover a interação entre os alunos e os pais e buscar entender as dificuldades das crianças pode ajudar a melhorar o ambiente escolar. Segundo Curcio, isso pode se dar de várias maneiras. Há instituições, por exemplo, que realizam reuniões antes do começo do ano letivo para que os pais compartilhem eventuais dificuldades dos filhos que podem afetar suas relações ou mesmo o rendimento escolar, ajudando os professores a dedicarem um olhar mais atento à criança. Outro caminho é realizar atividades que estimulem e promovam a empatia entre os estudantes em detrimento daquelas que fomentam a competitividade.
Quando há exclusão, a instituição deve ser envolvida no processo de resolução do problema. Isso porque, destaca Vera Ramirez, os grupos que discriminam outras crianças também apresentam problemas e precisam de auxílio.
— A escola pode dar uma contribuição significativa na medida em que os profissionais trabalham para desenvolver a empatia. Existem dinâmicas que contribuem para o amadurecimento das crianças e dos grupos. É o contrário de educar para ser competitivo, já que o estímulo à competição pode desenvolver comportamentos problemáticos — diz a professora da Unisinos.
Uma eventual negligência da escola em relação ao problema pode fazer com que situações de exclusão e discriminação se agravem, e panelinhas fortalecidas podem levar a comportamentos violentos. Para que a superação dos conflitos seja efetiva, é importante que os agentes compartilhem valores comuns.
— A formação tem de ter cumplicidade entre a família e a escola. Não dá para cada um ensinar uma coisa. Gera conflitos. E a criança fica mais confusa ainda, porque não tem experiências anteriores — avalia Italo Curcio.
O papel da família e o exemplo dos pais
Não é só na escola que as panelinhas merecem atenção dos adultos. Pais de crianças que participam de grupos fechados também precisam acompanhar o comportamento dos filhos, estimulando-os a interagir com os outros.
— Quem se fecha em um grupo fica sem repertório. No momento em que está no grupo sente-se forte, mas fica com repertório pobre. Quando há mudanças, não sabe como lidar — explica Aidê Knijnik, especialista no atendimento a crianças, adolescentes e famílias.
A psicóloga destaca ainda que muitas vezes crianças fragilizadas montam grupos para sentirem-se protegidas. A discriminação promovida por panelinhas também pode ter a ver com lacunas afetivas de quem a fomenta. Segundo a professora Vera Ramirez, o bullying costuma partir daquelas que estão passando por problemas e não sabem como se expressar.
— Quando uma criança pratica bullying, em geral, é um indicador de que ela tem uma dificuldade. Não é por ser má. Às vezes está sozinha afetivamente e não tem um contato que permita perceber que algo não está bem — diz Vera.
Especialistas concordam que tanto os pais de quem discrimina quanto aqueles que têm filhos vítimas de situações de exclusão precisam investir no diálogo. Primeiro, com os pequenos, acolhendo-os e estimulando-os a buscarem resoluções não violentas para os problemas – nunca incentivando-os a revidar. Posteriormente com a escola e, sempre que houver abertura, com os pais das outras crianças envolvidas no conflito. Nesses casos, a abordagem deve ser construtiva, propondo alternativas conjuntas para resolver o problema.
O castigo, destacam especialistas, está longe de ser uma resposta efetiva. Quando há dificuldades de relacionamento, o ideal é trabalhar o conceito de empatia, dando instrumentos para as crianças refletirem sobre as próprias atitudes e colocarem-se no lugar das outras.
Quando a criança passa por uma situação de exclusão, é importante ainda que os pais procurem canais de interação com os pares fora daquele ambiente. Diversificando os grupos, a criança poderá criar laços com outras e aprender a lidar melhor com o desconforto.
Se as panelinhas são comuns e o contato das crianças com elas é quase inevitável, prevenir situações de discriminação está ao alcance da família. E a forma mais efetiva, segundo especialistas, é a educação pelo exemplo.
— Se os pais são pessoas que estabelecem relacionamentos sociais marcados pela compreensão, aceitação e respeito às diferenças, essa é a comunicação mais eloquente que uma criança em desenvolvimento pode receber. Em segundo lugar, transmitindo valores de tolerância, de que as pessoas são diferentes e de que se aprende com as diferenças — defende Vera Ramirez.
Para Luísa, a conversa ajudou
A separação dos pais não era novidade. A auxiliar Gabriela Toaldo, 34 anos, e o pai da filha da mais velha, Luísa, terminaram o relacionamento em 2012. Mas uma atividade de Dia dos Pais realizada no ano passado na escola particular onde a menina, então com sete anos, estudava, bastou para torná-la alvo de um grupo de crianças.
— Os alunos tinham que fazer um cartão para o pai. Como nos outros anos, ela fez para o avô. Um grupo de meninos percebeu e começou a fazer comentários cruéis. Virou um grande bullying — recorda a mãe de Luísa, hoje estudante do 3º ano do Ensino Fundamental.
O primeiro sinal de que algo não ia bem apareceu no dia em que Luísa encontrou o avô para entregar o cartão. Habitualmente afetuosa, mostrou-se mais fria, aparentemente incomodada com o próprio gesto.
A questão da panelinha é cruel, mas é comum. cabe aos pais darem uma boa base e passarem bons valores para os filhos.”
GABRIELA TOALDO
Mãe da Luísa
Mais tarde, a auxiliar administrativa reparou mudanças no comportamento da filha também em relação à escola.
— Ela chorava porque tinha que ir para a aula. Queria trocar de escola, começou a questionar por que não tinha pai — conta Gabriela.
Liderado por cinco colegas, o bullying com a menina tomou proporções maiores com o passar do tempo. Poucos meses depois da atividade de Dia dos Pais, apenas uma colega continuava próxima de Luísa, que passou a ser rejeitada pelo restante da turma.
Incomodada com o sofrimento da pequena, a mãe abriu duas frentes de ação. Primeiro, aproximou-se dos pais de cada uma das cinco crianças que haviam começado a brincadeira maldosa, compartilhando o problema. Depois buscou auxílio junto à escola, que rapidamente organizou atividades para conversar sobre os diferentes tipos de famílias em sala de aula.
A mobilização de pais e professores deu resultado. As crianças desculparam-se com Luísa e, em pouco tempo, a relação voltou a fluir de forma saudável, com a menina participando das brincadeiras como de costume.
— Mexeu muito com ela, mas agora ela brinca com todos e não se sente mais excluída. A questão da panelinha é cruel, mas é comum. Cabe aos pais darem uma boa base e passarem bons valores para os filhos. Com uma boa conversa, tudo se resolve — avalia Gabriela.
Como lidar com a exclusão
- Olhos e ouvidos atentos – Observe se há mudanças no comportamento da criança. Caso identifique alterações no humor, distúrbios alimentares ou rejeição à escola, converse com ela a respeito. Ouça e acolha o que ela tem a dizer antes de decidir como proceder.
- Procure a escola – Quando situações de exclusão causam grande sofrimento ou afetam o desempenho escolar, é importante que a escola seja envolvida na resolução do problema. Converse com os professores para buscar alternativas que melhorem a convivência.
- Dialogue com os pais – Caso tenha intimidade, procure falar individualmente com os pais das crianças envolvidas na panelinha. Muitas vezes eles não sabem o que se passa na escola. Seja propositivo e busque saídas construtivas.
- Evite mudanças bruscas – Sempre que houver um problema, estimule resoluções não violentas, mas que favoreçam a autonomia da criança, afinal ela terá de lidar com outros momentos de dificuldades ao longo do desenvolvimento. Mudar de escola deve ser o último recurso.
- Dê exemplo – Muito do comportamento das crianças é reflexo das atitudes paternas. Procure transmitir para os seus filhos valores de empatia e respeito ao próximo e às diferenças. Estimule que se relacione com diferentes grupos.