Conhecido por seus comentários sobre relacionamentos, educação e comportamento no programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, no seu canal no YouTube e em sua conta no Instagram, o psicólogo, escritor e palestrante Rossandro Klinjey esteve em Porto Alegre recentemente. Viajou a convite do Sindicato do Ensino Privado (Sinepe-RS) para fazer palestra no 15º congresso da entidade, intitulado Professor – Agente da Conexão. Antes, o paraibano de 47 anos conversou com GaúchaZH sobre temas que preocupam os pais: nossos filhos vão ser felizes? Nossos filhos estarão prontos para encarar o mundo? Estamos sendo bons pais?
– A última geração de pais criou uma ideia que é a pior ideia: meus filhos não vão passar pelo que passei – comenta o autor do livro Help! Me Eduque, voltado a pais, mães e responsáveis. – Mesmo com boas intenções, não vão evitar que os filhos tenham frustrações.
E isso – frustrar-se – é bom e importante, como o psicólogo conta no bate-papo a seguir.
O título de sua palestra é “Numa era de incertezas, o mais importante é ser feliz”. O senhor acredita que podemos ser felizes? Existe receita?
Bom, receita de felicidade é o primeiro mito a ser desconstruído: não existe. Então a primeira coisa que a gente tem, na tentativa de construir a felicidade, é não querer ver a felicidade como dizem para a gente que ela é: padronizada, estandardizada. Existe um modo particular de viver isso. E uma coisa é essencial: para ser feliz, a gente tem de aprender a ser infeliz também. A gente não consegue mais suportar tédio, pausas, hiatos psicológicos e angústia. Hoje, parte da infelicidade é a busca de felicidade constante. Virou um traço de loucura essa ideia de que a gente tem de escrever um happy end o tempo inteiro. Na verdade, a vida tem alternâncias profundas. A maturidade lhe dá condições de ver que essas alternâncias têm de ser vividas e não devem ser evitadas.
Essa valorização da felicidade não pode passar a impressão de que a frustração é um empecilho, e não algo essencial para a maturidade, para o crescimento pessoal?
Parece que frustração não pode existir. Isso tem dado origem a uma geração de pessoas incapazes, que vão se frustrar no futuro porque os pais querem que elas sejam felizes o tempo inteiro. Em geral, a gente cria imunidade a vírus na infância, mas essas pessoas não criaram imunidade psíquica contra as frustrações. Quando chega na fase adulta elas viram autoimunes e então se matam. O indivíduo está tão vulnerável e inapto a viver as experiências comuns da vida, como o fim do namoro, não passar num concurso, não entrar no vestibular que você sonhou. Você cria alternativas, novas possibilidades, a gente adia, mas as pessoas, às vezes, se matam.
Privacidade é para quem paga as contas. Criança tem de ser vigiada, cuidada. Não se pode dar privacidade a uma criança. Ao adolescente, este tem de conquistá-la aos poucos. Enquanto você é politicamente correto e não mexe nas gavetas e no computador do filho, do outro lado do meio social há hackers e muitos casos de pedofilia.
As pessoas estão cometendo mais suicídios?
Há um aumento na frequência de suicídios. No ano passado, arredondando, as mortes por violência urbana, ataques terroristas e guerras mataram menos do que o suicídio. É mais fácil morrer em casa do que em Bagdá ou comprando crack na Grande Porto Alegre. Isso significa que a gente teve um abandono da interioridade, começou a ter uma existência externa, plastificada, como a música do Radiohead (Fake Plastic Trees). A gente deixou de buscar essa interioridade, na busca de carpe diem constante e frenesi constante. Lembra muito a música Há Tempos, da Legião Urbana: “Parece cocaína, mas é só tristeza. (...) Muitos temores nascem do cansaço e da solidão”.
Em uma entrevista, o senhor falou que, de 30 anos para cá, uma geração de pais começou a fazer um retrospecto de sua infância, muitas vezes pobre e cheia de privações, e, na crença de que poderia fazer algo melhor para seus filhos, virou o fio, deixando de se preocupar com limites, disciplina, respeito. Qual é o resultado disso?
Existe uma busca infantil desenfreada que é preconizada por uma sociedade que prega sempre o prazer, nunca a dor. A última geração de pais criou uma ideia que é a pior ideia: meus filhos não vão passar pelo que passei. Mesmo com boas intenções, não vão evitar que os filhos tenham frustrações. Eles têm como base o amor, é um sentimento bom o que está por trás, mas o resultado é catastrófico, porque a educação não é só o desejo, mas o que se concretiza. O sofrimento e a frustração têm caráter pedagógico, para que o indivíduo saiba lidar com isso durante a vida.
Ao mesmo tempo em que privamos nossos filhos do não e da frustração, fundamentais para seus desenvolvimento, enchemos suas agendas de tarefas e aulinhas, em um processo que o pediatra Daniel Becker chama de adultização, talvez pensando em prepará-los para as demandas da vida adulta. É um paradoxo, não?
O que a gente deveria cuidar muito, que era o desenvolvimento moral e emocional, a gente abandonou, e o que a gente não deveria encher tanto, que são as atividades, a gente está fazendo. Crianças de seis anos já são educadas pelos pais para serem um PhD em Harvard. Têm de estudar caratê, línguas, balé, xadrez etc. Uma geração sonhou em fazer isso mas não podia pagar, e agora que podem pagam para o filho fazer. Isso é um fato. Outro fato é que realmente está muito competitivo o mundo, para passar no Enem, com conteúdo demais e pouca profundidade. Cadernos demais e enormes, aulas no sábado, simulado no domingo de manhã etc. O modelo brasileiro não é funcional. Há um incremento de crianças e adolescentes suicidas porque não vêm suportando essa carga. Os pais têm responsabilidade de deter isso.
Os filhos não respeitam os pais porque esses não se colocam na posição de pessoas que devem ser respeitadas, assim os filhos os consideram meras pessoas que satisfazem seus desejos. Os pais não respeitam o professor, porque acham que é um funcionário, que eles estão pagando para fazer seu trabalho. Professor não faz produto. Você não está desenvolvendo um produto, está desenvolvendo seres humanos.
Perto de 1 milhão de visualizações, um vídeo seu tem como título “Filhos precisam entender que a casa não é deles”. Pode falar um pouco sobre isso?
(Risos) Há famílias em que os pais têm a porta trancada e os filhos a porta aberta, e há outras em que os pais têm a porta aberta, e os filhos, a porta trancada. E não está dando certo, porque a privacidade é para quem paga as contas. A regra é essa. Quando digo isso, parece meio duro. Mas a criança tem de ser vigiada, cuidada. Não se pode dar privacidade a uma criança. Ao adolescente, este tem de conquistar aos poucos a privacidade. Você tem de fazer isso porque isso é cuidar. Enquanto você é politicamente correto e não mexe nas gavetas e no computador do filho, do outro lado do meio social há hackers que conseguem violar computadores até de ministros, imagina o que podem fazer com o computador de um adolescente. Há muitos casos de pedofilia. Hoje, não basta o filho ter chegado em casa, sem riscos, que bom, acabou o perigo. Não: o computador oferece um risco muito maior do que andar na rua à 1h. Os riscos são diferentes, há um leque maior de riscos, o que exige dos pais um repertório de cuidado muito diferente do que os nossos pais tinham para lidar com isso.
Qual é a solução?
A gente não vai colocar uma redoma, mas tem de criar critérios. A princípio, a criança não deve ter celular, mas, se ela tiver, não pode dormir com ele, não pode falar a noite toda, porque não vai dormir bem, não vai acordar bem, não vai aprender etc.
Como o senhor vê a relação das crianças com a escola e dos pais com a escola?
A gente tem perda de autoridade relativa em todos os segmentos da sociedade. Para o bem e para o mal. O presidente americano não tem o mesmo poder que tinha nos anos 1980. Há uma perda relativa de poder. Para o bem, porque há um empoderamento coletivo; para o mal, porque, ao desempoderar os pais, isso repercute no respeito à segunda figura de respeito longeva, que é o professor. Os filhos não respeitam os pais porque esses não se colocam na posição de pessoas que devem ser respeitadas, assim os filhos os consideram meras pessoas que satisfazem seus desejos, não as figuras que devem dar a proeminência psicológica. Não se respeita o professor porque não se respeita os pais, e os pais não respeitam o professor, porque acham que o professor é um funcionário, que eles estão pagando para ele realizar o seu trabalho. Professor não faz produto. Você não está desenvolvendo um produto, está desenvolvendo seres humanos. Quando os pais desrespeitam o professor, é um caos. O professor que tenta fazer o que os pais não fizeram – dar limites – é humilhado também pelos pais, em vez de ser elogiado. O professor pensa: o filho está sendo meu aluno, mas será sempre filho desses pais. Ainda bem que é filho deles, não meu. E ele, o pai, vai pagar a consequência dessa omissão. Isso cria na escola uma demanda emocional muito grande. Ao mesmo tempo que desrespeita os professores, a criança está procurando uma pessoa para respeitar. Se o professor tiver habilidade em entender isso, e não entrar num jogo duro com a criança e a família, ele se torna a figura que os pais não são. Então você pode influenciar o aluno, o que é uma oportunidade, porque a educação é relacionamento; se não fosse relacionamento, o YouTube teria acabado com todos os educadores. Não é somente repassar conteúdo, é repassá-lo a partir de uma relação afetiva.
Entre uma educação mais rígida e uma mais liberal, a mais rígida é mais funcional. em Uma educação libertária, é mais fácil dar errado porque você deu ao filho escolhas que ele não podia fazer. Tem famílias em que a criança escolhe o carro! Isso gera estresse. Ela é empoderada, o que para o ego dela traz satisfação, mas por outro lado é esmagador, porque terá de decidir coisas para as quais não tem maturidade.
O que podemos fazer em nome de um futuro melhor para nossos filhos?
Primeiro, a gente tem de entender que o mundo mudou e a gente não pode voltar com aquela educação que nossos pais nos deram. Isso é um mito. Mas precisamos entender que há coisas do passado que devem voltar. Temos de manter o que conquistamos, por exemplo, o empoderamento feminino, a participação maior do pai na casa, um diálogo entre pais e filhos... Mas ao mesmo tempo precisamos recompor o espaço da disciplina, do respeito e da ordem, porque elas são e sempre foram essenciais na formatação do psiquismo humano. Precisamos desses elementos na infância para formar um ego saudável, capaz de suportar o mundo como ele é. Ao abrir mão disso com o sonho de fazer uma família mais feliz do que fomos quando crianças, o que conseguimos? Temos a geração mais suicida, mais drogada, mais consumista, mais ingrata da história humana. Ou seja: os planos não deram certo. Devemos entrar em processo de culpa? Não. Não adianta. Você precisa fazer o que chamo de reintegração de posse afetiva. Recupere o terreno que você perdeu. Enquanto seu filho está sob sua irradiação psicológica e financeira, você tem poder de determinar, de orientar, de normatizar as coisas. Uma criança quer pegar na mão do pai ou da mãe quando vai atravessar a rua sem se preocupar para onde olha, porque sabe que alguém está levando-a. Deixar seu filho sozinho na internet, deixar ir para o shopping sozinho ainda no início da pré-adolescência é tão arriscado quanto dizer para uma criança de dois anos atravessar sozinha a rua. Durante muito tempo, temos de pegar na mão, até que eles possam caminhar com os próprios passos.
Como equilibrar as coisas? Como evitar a sensação de que estamos podando, tirando autonomia?
Vamos imaginar que eu não consiga o equilíbrio. Bem, entre uma educação mais rígida e uma mais liberal, a mais rígida é mais funcional. Uma educação rígida pode gerar trauma, mas geram pessoas funcionais que pagam terapia para resolver. Uma educação libertária demais pode gerar pessoas inviáveis. Não é uma regra. Mas é muito mais fácil que dê errado porque você deu ao indivíduo escolhas que ele não podia fazer. Tem famílias em que a criança escolhe o carro da casa! Isso gera estresse. Se para a gente já gera estresse, imagina para a criança, que na verdade tem de brincar? Ela é empoderada, o que para o ego dela provoca satisfação, mas por outro lado é esmagador, porque terá de decidir coisas para as quais ela não tem maturidade.
Passando agora para a vida adulta, quais são os temas mais urgentes a serem abordados?
Prioritariamente, perdão. Porque a base dos transtornos dos relacionamentos, de casamento, de trabalho, entre familiares, é a incapacidade que a gente tem de entender que as pessoas não são perfeitas, elas nos machucam e nós também as machucamos. Para poder viver uma vida saudável, a gente precisa estar com disposição emocional para perdoar sempre. O que quer dizer que eu preciso olhar para o outro de forma global, e não apenas a parte do erro. Relacionamento não é fotografia, é um filme que vai andando. Mágoa é a fotografia de um momento. Pessoas maduras veem o filme. Elas ficam chateadas, mas sabem que a coisa continua. Precisamos, também, ter espaço para nossa interioridade. Nós nos abandonamos. Não paramos para refletir porque estou triste, o que aconteceu que estou tão brabo. A gente simplesmente bebe uma, vai pra balada, assiste à Netflix, toma um remédio para dormir e não para para refletir e tentar mudar condutas e comportamentos. E precisamos nos reconectar como pessoas. As tecnologias estão nos tornando próximos virtuais, mas distantes dos reais. Há pessoas que moram na mesma casa mas estão se abandonando. A maior queixa dos adolescentes hoje é “meus pais não me escutam”. Eles só gritam. A família deve recuperar aquele espaço de sentar sem nada competindo com a atenção. Nem telefone, nem Netflix nem nada, para dialogar, perguntar como foi o dia. Você pode criar isso. Uma amiga minha criou o dia do taco (o prato mexicano), uma vez por semana. Era a única atividade da noite. Ela contou que, na primeira noite, houve um estranhamento, “a gente não sabia o que conversar”. Depois de 15 minutos, nos quais a crise de abstinência de celular passou, eles se reencontraram, porque eram uma família. Havia uma história construída juntos. E terminaram a noite muito mais tarde do que costumavam, brincando. Os filhos que no início reagiam à noite do taco começaram a cobrar: amanhã tem noite do taco! Um dia, sobrou taco e a mãe sugeriu pra filha levar de lanche. “Mãe, eu não gosto de taco”, ela respondeu. Mas então por que você sempre cobra pra gente fazer? “Eu cobro o dia de a gente estar junto”, ela respondeu.