"Esperei 25 anos por este momento." Foi com esta frase que Gabriella Meindrad Santos de Souza, 32 anos, iniciou uma postagem em suas redes sociais na qual mostrou uma foto usando um vestido de prenda. O traje, de tecido claro com bordados de flores, foi usado para um evento especial: durante a etapa regional da Ciranda de Prendas da 10ª Região Tradicionalista, na cidade de Mata, na Região Central, no último sábado (29), 57 peões e prendas que fizeram parte de gestões nos últimos 32 anos foram homenageados com menções honrosas. Para Gabriella, porém, o fato foi mais significativo porque ela é uma mulher transexual. Naquele dia, pela primeira vez, foi chamada de prenda.
Gabriella nasceu com características físicas masculinas. Aos sete anos, entrou pela primeira vez no CTG Cancela da Fronteira, de São Vicente do Sul, sua cidade natal. Durante anos, participou ativamente do movimento tradicionalista. Dançou, declamou poesias, participou de inúmeras ações junto à comunidade. Em 2003, aos 15 anos, decidiu participar do Entrevero de Peões, concurso que escolhe o Peão Farroupilha. Na etapa regional, levou o título de 2º Peão na sua categoria.
— Em todos aqueles anos, ganhei mais de 15 títulos. Entre eles, um de Destaque Cultural Regional. Segui no movimento até 2006. Parei de participar ativamente quando passei a viver em São Leopoldo, mas nunca deixei de acompanhar. Mais tarde, aos 25 anos, quando comecei a transição, decidi me afastar. Para não enfrentar preconceito e para não acharem que eu estava forçando algo. Acompanhava as pessoas, alguns amigos, mas de forma mais distante — explica.
A vida seguiu, Gabriella tornou-se servidora pública em São Vicente do Sul e, atualmente, também estuda Direito em Santa Maria. Participa de diversos eventos e movimentos em prol de direitos das pessoas LGBT+ e do feminismo, por exemplo. Apesar do distanciamento, o tradicionalismo nunca ficou para trás.
— Os valores que tenho foram construídos por meio da vivência dentro do movimento. Isso faz parte de mim — afirma.
No início deste ano, Gabriella decidiu escrever uma carta ao MTG, questionando a participação de transexuais no movimento. Dois meses depois, recebeu uma resposta:
— Foi dito que haveria mais acolhimento do que preconceito. Que os CTGs devem ser inclusivos e acolhedores. Desde então, pensava em voltar a participar. A Ciranda foi a oportunidade.
A iniciativa de homenagear prendas e peões foi do diretor cultural da 10ª RT, Danilo Alves. Segundo ele, a história de Gabriella foi tratada com naturalidade.
— Convidei todos os peões e prendas de gestões anteriores. A Gabriella faz parte desta história, logo, também foi convidada. E não fazia sentido ela ser chamada de peão. Afinal, hoje, é uma mulher. Ela recebeu a homenagem no gênero que escolheu — conta Danilo.
Entre os convidados do evento, muitos sequer sabiam da história anterior de Gabriella.
— O dia era de festa. A ideia não era expor ninguém ou criar um clima desconfortável. Foi tão natural que não teve espaço para rejeição — conta o diretor cultural.
Pensamento parecido tem o presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), Nairo Callegaro:
— Hoje, ela é a Gabriella. Então, para nós, também. Temos de respeitar como ela se coloca para a sociedade. A nós, cabe apenas o respeito.
Inédito
O caso de Gabriella é tratado como inédito. Nem ela, nem o diretor cultural da 10ª RT e o presidente do MTG têm notícias de que outra mulher transexual tenha sido homenageada como prenda em um evento oficial.
— A sociedade é livre, cada pessoa pode fazer as suas escolhas. E o movimento faz parte dessa sociedade, não pode ser blindado contra questões como esta — diz Callegaro.
Danilo se une ao coro:
— Ela pode ser a primeira, mas muitas virão. Aos poucos, o tradicionalismo está sendo mais compreensivo e mais sensível com estas questões. Isso vai ser muito bom para o movimento. Ninguém é menos ou mais tradicionalista em função de suas opções, de sua vida.
Repercussão positiva
Gabriella mostrou sua história nas redes sociais no domingo. Desde então, a repercussão só cresce, e tem sido positiva.
— Voltar a participar e receber este reconhecimento como prenda, depois de tantos anos, foi muito emocionante. E o mais importante é que fui tratada com muito respeito. Existem questões muito enraizadas. Existe preconceito. Mas, naquele dia, todos foram tratados como iguais. Percebi que os valores do movimento tradicionalista, como a igualdade e a empatia, foram realmente colocados em práticas — diz Gabriella.
Daqui pra frente, ela pretende seguir participando do universo tradicionalista.
— Espero contribuir para que o movimento caminhe para o lado da humanidade, da inclusão, para que deixe essa construção tão relacionada ao masculino de lado. E dançar em uma invernada seria um grande sonho — finaliza.