Retratar o Brasil da última década e dar perspectivas aos próximos dez anos são os desafios do Censo Demográfico, previsto para ser realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre agosto e outubro de 2020. Porém, a menos de três meses de a pesquisa experimental ocorrer com os moradores de Poços de Caldas (MG), última etapa antes do levantamento oficial, a direção do instituto decidiu alterar a quantidade de perguntas dos dois questionários.
A resolução surpreendeu pesquisadores que utilizam os dados disponibilizados pelo IBGE. Entre seus argumentos, eles alegam que a alteração poderá comprometer as informações recolhidas e prejudicar as prefeituras dos municípios do interior dos Estados, que se baseiam nos microdados da pesquisa para desenvolverem políticas públicas.
Na quinta-feira (6), a divergência com a gestão indicada pelo governo Jair Bolsonaro levou quatro integrantes da diretoria de pesquisa do IBGE a entregar seus cargos, e sindicatos, técnicos e três ex-presidentes do instituto lançaram a campanha Todos pelo Censo, para tentar reverter os cortes no levantamento. Os ex-presidentes são Eduardo Nunes Pereira, Wasmalia Bivar e Roberto Olinto — os dois primeiros de gestões petistas, e o terceiro, do governo Michel Temer. Eles defenderam que os servidores resistam a pressões da gestão e se mantenham nos cargos.
— Resistam e desobedeçam — pregou Pereira, que presidiu o IBGE durante a realização do último Censo Demográfico, em 2010.
Previsto para ser aplicado nos cerca de 71 milhões de domicílios brasileiros, o questionário básico terá 25 questões, nove a menos do que em 2010. Já o da amostra, aplicado em 10% dos lares, terá 26 perguntas a menos do que no último levantamento, totalizando 76 questões.
Justificando a necessidade de redução na duração da entrevista do básico, que deverá passar de sete para pouco mais de quatro minutos, e do questionário aprofundado, com previsão de 18 minutos, a presidente do Instituto, Susana Cordeiro Guerra, ressalta que o Censo não será prejudicado.
— A gente precisa garantir que o censo cumpra a função principal de um censo, que é contar a população e medir o perfil da população brasileira. E o cenário da operação de campo de 2020 é bem diferente do que era em 2010. A gente está num cenário de Brasil e mundo bastante diferente. As coisas estão mais velozes, as informações fluem com rapidez maior, as pessoas têm uma atenção mais curta. Então, a gente tem que adaptar a operação para esta realidade de hoje — defende.
Assim como haverá cortes nas questões, outras serão incluídas, conforme Susana. Há novas perguntas étnico-raciais e sobre quilombolas. Elas já foram incluídas nas provas-piloto. Os 5.570 municípios brasileiros passarão pelo estudo básico, que deverá contar com até 190 mil recenseadores nas ruas no período previsto — o número exato de profissionais ainda não foi divulgado pelo órgão. Os temas abordados no Censo 2020 serão características dos domicílios, identificação étnico-racial, nupcialidade, núcleo familiar, fecundidade, religião ou culto, deficiência, migração interna ou internacional, educação, deslocamento para estudo, trabalho e rendimento, deslocamento para trabalho, mortalidade.
— Concordo que é preciso aprimorar o questionário para melhorar a qualidade, mas as mudanças precisam ser debatidas e testadas de forma racional. Não é possível, um ano antes do Censo, mudar tudo. Diálogo e planejamento são fundamentais para a qualidade da pesquisa. Corremos risco de termos um apagão de informações — alerta o sociólogo André Salata, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Medida para tornar o processo mais eficiente
Pesquisador de temas como urbanização, mobilidade espacial da população, teoria demográfica e mudanças ambientais, Ricardo Ojima, presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sublinha a importância de o processo ser transparente com a população.
— O problema maior não são os cortes nas questões, mas o processo ter sido atravessado. Estas alterações não foram previstas antes. O Censo Demográfico 2020 começou dez anos antes, quando foi concluído o de 2010. É algo que envolve 200 mil pessoas, não é algo simples — enfatiza Ojima.
Contrariando a opinião de outros pesquisadores, o economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), Oscar Frank, que utiliza diariamente as informações do IBGE para formalizar análises do mercado, acredita que as alterações não prejudicarão os estudos futuros.
— Reduzir o número de questões é uma prática comum em outros países para tornar o processo mais eficiente — resume.
As principais mudanças para o Censo Demográfico 2020
Confira as alterações previstas para o questionário:
Rendimento total
Entre as perguntas que não estarão no questionário básico, há uma relacionada ao rendimento total de cada integrante da família. Será questionado apenas o salário do responsável pelo domicílio. O diretor de pesquisas do IBGE, Eduardo Rios Neto, justificou, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, que o ajuste reduz consideravelmente o tempo de aplicação do questionário.
No entanto, pesquisadores e servidores do instituto salientam que haverá perda na qualidade da informação sobre rendimento na família. Eles argumentam que nos lares onde há mães com benefícios do Bolsa Família ou familiar aposentado, algo comum no Brasil, nem sempre o chefe de família tem a principal renda da casa. Para André Salata, a informação do salário de cada integrante da casa pesquisada é fundamental para se identificar os bolsões de pobreza no país.
— Sem a precisão desta questão, não será possível indicar onde estão os domicílios pobres no Brasil, onde as políticas públicas precisam chegar com prioridade — preocupa-se o professor, que costuma usar os dados do IBGE em estudos sobre pobreza, desigualdade social e mercado de trabalho.
Oscar Frank, ao contrário, defende a decisão do IBGE:
— Se há a possibilidade de obtermos os dados mediante outras pesquisas, é possível flexibilizar.
Questionário online
Segundo a presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, uma das metas para agilizar a captação dos dados é ampliar a coleta pela internet. Em 2010, conforme Susana, este tipo de serviço atingiu menos de 1% da ação. Desta vez, mesmo sem ainda prever qual será o percentual, a presidente garante que mais pessoas poderão responder virtualmente às questões do próximo Censo.
— A gente quer apostar na tecnologia e que o recenseador seja um dos meios de coleta — informa.
Para o geógrafo, demógrafo e professor do Departamento Interdisciplinar do Campus Litoral Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ricardo Dagnino, trabalhar com o Censo virtualmente pode ser uma saída importante para agilizar o processo.
— O mundo caminha para sistemas estatísticos que não dependem de recenseador. Todo o censo é baseado em autodeclaração. É preciso confiar nos registros. Já deveríamos estar caminhando para respondermos os questionários via aplicativo, por exemplo. Muitos países na Europa já produzem estatísticas baseadas nos telefones celulares presentes na região — exemplifica.
Ricardo Ojima concorda que é preciso avançar na questão tecnológica, mas que este não é o melhor momento para se pensar em novas alterações.
— Qualquer erro nos dados nos fará perder 20 anos de informações: os últimos dez e a próxima década. É fundamental avaliarmos os dez anos que se passaram, pois houve mudanças muito importantes na última década.
Ele ainda destaca a parcela da população sem acesso à internet.
— Não há cultura online suficiente no Brasil para um questionário desta importância ser respondido virtualmente. Existe uma demanda reprimida por qualidade de ensino. Há camadas que não sabem navegar além das redes sociais, e as perguntas não vão ser feitas pelo WhatsApp. Se compartilham informações sem ler, imagine responder questões mais complexas. Quem não tiver treinamento pode ter dificuldades — ressalta.
Retirada do item Emigração
Todas as perguntas sobre o tema Emigração, feitas para mapear brasileiros que deixaram o país, foram retiradas. Susana afirma que os dados podem ser substituídos por registros da Polícia Federal, mas os técnicos dizem que a base não é sólida como no Censo.
Ricardo Dagnino sublinha que a Polícia Federal trabalha com dados considerados sigilosos e possui método de coleta diferenciado.
— E, muitas vezes, precisamos dos dados de mais de um órgão para compararmos e calibrarmos. O Censo é quase uma operação de guerra, tudo tem que ser feito no tempo estipulado, não dá para ficar mudando toda hora — acrescenta.
Aluguel e bens duráveis
Outra crítica dos pesquisadores é a retirada, em ambos os questionários, da pergunta sobre o valor do aluguel. Eles salientam que, sem o item no Censo, não será possível calcular o déficit habitacional de cada município.
— Houve investimentos para diminuir este déficit e ficaremos sem poder comparar se houve mesmo esta diminuição. Independente de mais à frente termos algo sobre o tema na pesquisa de orçamentos familiares (POF), que costuma ser feita a cada dez anos (a última foi feita entre 2008-2009), estes números serão relativos apenas às nove regiões metropolitanas com o maior volume de pessoas. Não teremos como compensar a ausência das demais regiões — explica Ricardo Ojima.
Com relação à retirada da questão sobre posses de bens duráveis _ como geladeira, fogão — ele destaca que a pergunta pode parecer simples, mas é de extrema importância para confirmar se as políticas públicas focadas em dar acesso ao crédito, ao mercado de consumo, tiveram ou não sucesso.
André Salata concorda com Ojima, alegando que ambas as questões são essenciais para indicar a movimentação econômica dos brasileiros:
— São itens necessários que mostrarão quanto as famílias ainda gastam com moradia e para entendermos os indicadores de poder de consumo e de pobreza.
Redução no orçamento
A presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, reconhece que o Censo sofrerá uma redução no orçamento previsto para 2020, de R$ 3,1 bilhões para uma expectativa próxima de R$ 2,3 bilhões.
— Há duas coisas aqui: uma é a nossa restrição orçamentária, que a gente, de fato, tem. E a gente não tem este número exato ainda, porque a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) está em discussão. Então, o orçamento de 2020 ainda está em discussão. Mas se fala numa sinalização de um corte em torno de 25%. É com isso com que a gente está trabalhando. Em função deste ajuste orçamentário, a gente teve que adequar a operação a esta realidade — explana.
Susana faz questão de esclarecer que a adequação da operação em função da restrição orçamentária é fruto de uma sequência de ajustes, relacionados à folha de pagamento, com equipamentos, treinamentos, método de supervisão, avaliação e coleta. E reforça que não tem relação com os cortes no questionário.
— Mesmo que não tivesse esta restrição orçamentária, nós estaríamos fazendo estes ajustes no questionário porque eles dizem respeito a uma modernização da operação, a uma otimização da operação censitária e que o mundo inteiro está caminhando. Mesmo depois destes ajustes que nós fizemos no questionário, tanto no básico como no da amostra, o Brasil continua tendo um questionário maior do que 80% dos países no mundo. Este é um fator significativo. Antes, a gente era um dos cinco maiores questionários do mundo — finaliza.
Vagas abertas para Censo Experimental
As inscrições para 209 vagas temporárias de recenseadores e agentes censitários do IBGE estão abertas até 9 de junho. Os aprovados atuarão no Censo Experimental, previsto para acontecer entre setembro e novembro desde ano, no município de Poços de Caldas (MG). Essa etapa será um ensaio geral para avaliar e aperfeiçoar os procedimentos previstos para o Censo Demográfico 2020. Os interessados poderão se inscrever no site do Instituto Brasileiro de Apoio e Desenvolvimento Executivo (Ibade), neste link.
Por que fizemos esta matéria?
As mudanças no questionário do Censo têm sido questionadas por especialistas. Ele será aplicado no ano que vem, dez anos após o último. A reportagem visa esclarecer quais serão elas, entrevista representantes do IBGE, que realiza o estudo, e estudiosos que utilizam seus dados.
Como apuramos esta matéria?
O primeiro passo foi conversar com a presidente do instituto, a fim de esclarecer todas as mudanças que serão anunciadas.Na sequência, a repórter procurou especialistas na PUCRS, UFRGS e Unisinos para avaliarem as alterações. Entidades locais que usam os dados obtidos pelo Censo em seus estudos também foram consultadas. A indicação para ouvir a Associação Brasileira de Estudos Populacionais, que engloba professores e pesquisadores do país todo que atuam em diferentes frentes dos temas pesquisados pelo IBGE foi do professor Ricardo Dagnino, da UFRGS, ouvido para esta reportagem.