Na data em que completa 40 anos, o frei capuchinho Marcelo Monti Bica, de Porto Alegre, começará de fato, nesta terça-feira (28), uma longa caminhada: atravessar os cinco continentes a pé pelos próximos 10 anos. A viagem terá o propósito de incentivar a prevenção ao vírus HIV, levar uma palavra de apoio aos soropositivos e esclarecer dúvidas sobre a aids – doença que causou a morte da irmã dele, Aline, aos 28 anos.
Integrante da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos há 23 anos, Marcelo conta ter nascido peregrino. Até os sete anos, viveu ao lado de Aline, um ano e meio mais nova, em pelo menos seis diferentes cidades do interior do Estado. Enquanto a mãe trabalhava, os irmãos eram cuidados por vizinhos. Sem ter o pai biológico por perto, ele recorda que as mudanças surgiam repentinamente para a família fugir da miséria. Mesmo apaixonado pelos estudos, teve dificuldades para concluir o Ensino Fundamental devido às inúmeras transferências de escola. Com 13, ainda estava no quarto ano.
Aos 15 anos, morando numa única peça com a mãe e outros irmãos mais novos na Vila Brasília, no Jardim Carvalho, em Porto Alegre, Marcelo ouviu de uma vizinha o convite para se tornar padre. Seria uma forma de “ter comida boa, estudar e ganhar alguma estabilidade na vida”, segundo ela. Mesmo desconhecendo o real significado de tornar-se um religioso, o jovem aceitou a proposta.
Para isso, porém, precisava concluir o nono ano, fazer a catequese e a crisma. Dedicado, o então adolescente manteve o foco e, em dois anos, cumpriu as três exigências. Neste mesmo período, integrou um grupo de jovens católicos, os mesmos que lhe apresentaram uma família integrante da Paróquia Senhor Bom Jesus que lhe ajudaria até os dias atuais. Para mantê-lo na meta de se tornar capuchinho, o casal Sílvio e Nívea Scotti, ambos falecidos, adotou Marcelo aos 16 anos.
– Com a minha família adotiva, descobri o que era ser amado e acolhido. Eles foram muito importantes na minha vida. Por isso, fiz questão de cuidar da minha mãe adotiva, que estava com Alzheimer, nos últimos meses de vida dela – conta Marcelo, que morou na casa de Nívea até ela falecer, aos 89 anos, em julho deste ano.
Vida itinerante não é novidade
No site caminhodealine.com, ainda em construção e que depende de voluntários para ser finalizado, Marcelo fala sobre o período em que se tornou frade. “O que eu não sabia quando ingressei é que um dos elementos essenciais desse modo de vida é a itinerância. Nesse período, nunca fiquei mais do que quatro anos no mesmo lugar. Ao todo, foram 10 comunidades diferentes, incluindo dois países”, diz o depoimento.
Durante o noviciado, Marcelo foi desafiado a caminhar sem dinheiro pelas ruas e sem se identificar como frade. Deveria pedir comida e um lugar para dormir, da mesma forma como fazia São Francisco de Assis. Ele e um colega, então, caminharam por alguns dias apenas com a roupa do corpo, um livro de orações e um evangelho. Viu generosidade nas ofertas de comida e hospedagem, mas também a desconfiança de alguns e a violência das ruas. Assim, descobriu a paixão por ouvir e escrever as histórias dos outros.
Como frei, Marcelo teve a oportunidade de cursar as faculdades de Filosofia e Teologia e de atuar em projetos sociais. Depois da morte da irmã, em 2008, ficou quatro anos trabalhando no atendimento aos soropositivos na Casa Fonte Colombo, instituição mantida pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos do Rio Grande do Sul.
Em 2013, quando fazia mestrado em Antropologia, no Instituto Católico de Paris, na França, começou a se questionar sobre o que estaria fazendo em 10 anos. Não era opção ficar sentado pesquisando em frente a um computador, o que fazia na época, apesar da ideia de concluir a pós e tornar-se professor universitário. Foi quando lembrou da irmã, que escondeu a doença da família até partir.
– Comecei a pensar na Aline, na vergonha dela de compartilhar o que sofria e em como a vida é muito breve para vivermos de acordo com as expectativas e projetos dos outros. Eu precisava ver o mundo – justifica.
Peregrinação terá partida do Gasômetro
Determinado a mudar o rumo da sua vida, o frei deixou Paris depois do curso e se mudou para o Haiti, onde atuou como capuchinho em causas comunitárias. Nos últimos cinco anos, elaborou o plano que será colocado em prática a partir de amanhã. Todo o material da viagem, como carrinho, mochila e equipamentos, foi doado por amigos e voluntários que contribuíram na vaquinha virtual já finalizada. Apesar de não ter obtido os R$ 16 mil necessários para a compra de todos os equipamentos, roupas e utensílios, o frei não desistiu. Emocionou-se, por exemplo, com a campanha feita em Barros Cassal, a 256 quilômetros de Porto Alegre, onde atuou na comunidade. De lá, vieram R$ 3 mil reunidos em centavos recolhidos de cada morador que o conheceu na cidade.
– O maior investimento de uma vida é o encontro com as pessoas – sintetiza Marcelo.
Mesmo acostumado a jornadas distantes a pé – fez os 800 quilômetros do Caminho de Santiago mais de uma vez e também caminhou de Porto Alegre a Montevidéu (cerca de 800 quilômetros) –, Marcelo sabe que o maior desafio agora será se superar. Para isso, ouviu outros experientes caminhantes estrangeiros, fez um mapa com as cidades e países que serão percorridos e planeja andar 90 mil quilômetros pelos próximos 10 anos. Em cada lugar, quer visitar entidades que auxiliam os soropositivos, conhecer igrejas e as pessoas.
Toda a jornada será publicada no Facebook, no Instagram e no site do projeto. Com ele, irão um carrinho especial para carregar mantimentos e uma mochila com algumas peças de roupa. Por dia, pretende gastar R$ 20 em alimentação. Hoje, o que ele mais precisa são de pessoas que o ajudem com comida e indicações de hospedagem.
Nesta terça, às 8h, Marcelo estará na Usina do Gasômetro, na Capital, para se despedir de familiares, amigos, crianças e adolescentes com os quais conviveu nos projetos sociais. Alguns disseram que caminharão com ele nos primeiros quilômetros da jornada. Às 9h, parte rumo ao Uruguai com a intenção de voltar à cidade natal só em 2028.
– Não creio que todos os acontecimentos de nossas vidas estão conectados, no entanto, parece que muito do que vivi até então me trouxe ou me preparou para esse projeto – acredita.
Itinerário da primeira semana
Porto Alegre, Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, Camaquã, Cristal, São Lourenço, Turuçu e Pelotas
Para ajudar
- WhatsApp de Marcelo: (51) 98508-6678
-facebook.com/caminhodealine
-instagram.com/caminhodealine