
No dia de voltar ao Brasil, em julho de 2017, depois de uma imersão de dois meses na China, o funcionário público e artista plástico Carlos Ciprandi, 52 anos, morador de Planalto, no extremo norte do Rio Grande do Sul, teve a certeza de que estava renascendo. Sentindo-se pronto para colocar em prática um sonho acalentado por duas décadas, deixou para trás todos os pertences levados na viagem. Estava decidido a voltar apenas com a roupa do corpo. No lugar dos calçados, das outras peças de roupa e das possíveis lembrancinhas para os familiares, encheu as três malas com 230 itens feitos de bambu: de calculadora a óculos, um de cada. A nova bagagem ainda contou com uma bengala, trazida nas mãos, e um chapéu, também fabricados com a planta. O material, reunido a partir das próprias compras no país e dos presentes recebidos, teria o mesmo destino: completar o futuro Museu do Bambu, o primeiro no Brasil dedicado a mostrar a versatilidade da planta — em toda a América Latina só há outro com a mesma temática, localizado na Colômbia.
Especialista há 20 anos na cadeia produtiva do bambu, Carlos só conseguiu tirar o museu do papel no início deste ano. A ideia engatinha no município de 10,5 mil habitantes. Há quem ainda passe pela rua e estranhe a placa em frente ao prédio com paredes tomadas por trepadeiras unhas de gato e área de entrada feita com taquaras estilizadas. A 425 quilômetros de Porto Alegre, o museu costuma receber visitantes de Santa Catarina, cuja divisa fica a 36 quilômetros. Cerca de 95% deles, segundo Carlos, são turistas que seguem na direção de cidades turísticas vizinhas como Ametista do Sul e Iraí. Para atraí-los, o proprietário instalou, às margens da RS-324, uma placa indicando a novidade na região.

— Mais do que falar, a gente mostra o que efetivamente pode ser feito. Depois de tanto estudar e de ver as maravilhas que esta gramínea proporciona, me senti na obrigação de compartilhar com as pessoas — conta o proprietário.
Para Carlos, o material catalogado em Planalto é uma pequena amostra da grandiosidade e do potencial de encanto da planta venerada no Oriente e que, em países como Japão e China, tem mais de 4,5 mil produtos registrados. Ao cruzar a porta do museu, um universo feito de bambu se apresenta. À direita, um tabuleiro e as peças de xadrez se destacam entre as dezenas de objetos guardados nas prateleiras de vidro. O relógio de pulso (feito de bambu!) e os produtos comestíveis, de broto da planta, também despertam a atenção. No meio da sala, há uma estante feita com um antigo capô de automóvel, que guarda diferentes tipos de assoalhos produzidos a partir da planta e vendidos na China. Carlos preocupou-se em trazer também os manuais para confecção dos produtos, apesar de estarem escritos em mandarim.
O nascimento de Jesus, com direito aos três reis magos e ao bebê na manjedoura, foi reproduzido pelo artesão com colmos da planta. Chapéus de diferentes tamanhos, luminárias e utensílios de cozinha ficam espalhados pela sala. Até os canudos de plástico já foram substituídos, no museu, por varinhas de bambu, fabricadas artesanalmente e vendidas na lojinha do local. Em outra parte, uma rede de deitar está pendurada no teto, enquanto um triciclo infantil e uma bicicleta, cujo corpo foi construído com varetas de taquara, também atraem o olhar .
Pela resistência do material, até adultos arriscam-se andar na pequena moto de bambu, que inicialmente foi pensada apenas para o uso de crianças. E ela não quebra. Mas é no canto esquerdo do salão que as peças mais curiosas do museu ganham os visitantes: o teclado e o mouse de computador, o pen drive, a calculadora e o rádio. Não são simples adornos. Todos os eletrônicos fabricados com bambu “têm utilidade comprovada”, garante o proprietário.

No período entre as 14h e as 18h, quando o museu está aberto a visitações, duas assistentes são responsáveis por atender quem chega sem ter agendado horário. Para conversar com os grupos maiores, programados previamente nos finais de semana e formados em sua maioria por estudantes, Carlos dá um jeito de estar presente, tornando a experiência do visitante ainda mais marcante. A animação do proprietário contagia quem desconhece a cultura do bambu.

— Estão vendo esta tábua? Ela não é o que vocês estão imaginando — diz Carlos, apresentando à equipe de ZH um objeto que parece de madeira, mas que é um pedaço de bambu com recortes circulares no meio, como se fora um descanso de panelas.
Enquanto a mão direita segura o objeto pela borda, a palma da esquerda fica sob a peça. Tal qual um mágico apresentando o novo número, o artista plástico tira rapidamente a mão que a apoiava e surge uma cesta de frutas. Quando vira do outro lado, retirando as frutas, a cesta se torna um vaso.

— Vocês sabiam que posso fazê-los ouvir a chuva, mesmo com sol lá fora? — Carlos provoca a reportagem, mais uma vez.
Em seguida, surge com um toco de taquara, de cerca de 50 centímetros, fechado nas duas extremidades. E começa a virá-lo de cima para baixo, e vice-versa. O som se parece com o de uma chuvarada na floresta, gotas pesadas caindo sobre as folhas antes de atingirem o solo. Um verdadeiro calmante. Dá vontade de ficar virando sem parar o chocalho improvisado.

— Enchi o bambu de miçangas para ter a chuva dentro de casa — resume o artista plástico.
Projeto de vida
O entusiasmo sempre foi marcante, mas, até pouco tempo atrás, nem isso fazia com que Carlos não fosse visto com desconfiança e até desdém no pequeno município da Região Norte. Ele se emociona ao recordar o tempo em que os três filhos, hoje adultos, eram identificados pelos colegas da escola como os “filhos do louco dos bambus”. Carlos afirma que o isolamento forçado por não ser compreendido na comunidade o levou à depressão. Apesar das dificuldades, que se prolongaram durante um longo período, ele diz que jamais desistiria da vida dedicada à cultura do bambu.

— É um projeto de vida — explica.
O artesão aponta que o fascínio pela planta vem da polivalência dela no Oriente, onde é usada da produção de papel à construção de casas ecológicas e de prédios à prova de terremoto, passando pela confecção de artigos para decoração, instrumentos musicais, móveis e alimentos. Um mercado que, aos poucos, atrai adeptos no Ocidente.

— Nos países ocidentais, quando se fala em bambu, logo vem à mente um cilindro de madeira. O que poucos sabem é que, se o cilindro virar uma tábua, não há mais limites para a criação — garante.
Foi durante a faculdade de Artes Plásticas, em Santa Catarina, que surgiu o interesse em aprender sobre o bambu. Ao perceber as possibilidades oferecidas pela planta, passou a estudá-la e concluiu uma especialização em desenvolvimento sustentável, com pesquisa que buscou mostrar tratar-se de uma cultura que se encaixa na agricultura familiar. Em 2011, o artista plástico comemorou a aprovação de uma lei federal que passou a tratar a planta como produto agrícola, com incentivo ao cultivo e ao manejo sustentável. Para ele, era mais uma prova de que estava certo quando decidiu aprofundar-se no tema.
Em 2014, começou a investir na produção de mudas. Mesmo sendo o único na região a apostar no cultivo, conquistou um feito histórico: tornou-se o primeiro brasileiro a obter financiamento do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf ) para o plantio de bambu. Conseguiu R$ 150 mil para a construção de uma estufa apropriada para as mudas. Na época, enfrentou mais uma vez a desconfiança de quem, por desconhecer as potencialidades da planta, não acreditava no seu projeto de produção.
Hoje, Carlos tem mais de 5 mil mudas estocadas, de seis espécies diferentes de bambu. Todas são comercializadas pela internet, principalmente para clientes de Três Coroas, Caxias do Sul, Passo Fundo e municípios de outros Estados, como São Paulo. Cada uma custa entre R$ 15 e R$ 50, dependendo da espécie e do tamanho .

Tudo é aproveitável
Carlos também produz em casa conservas de brotos de bambu — retirados com até 80 centímetros de altura da própria área plantada experimentalmente por ele no município. Há dois anos, a plantação foi ampliada para seis hectares. Cada hectare poderá render até mil varas por ano, a partir do primeiro corte — que está programado para ocorrer em 2020. A partir de então, a poda deverá ser anual. Cada espécie tem um ciclo de vida determinado, podendo durar de oito até 120 anos.
— O bambu não é uma árvore. É uma grama gigante. Uma gramínea. A partir dos quatro anos de vida, se não cortar a vara todos os anos, ela morre. É como cortar uma unha. Colhemos nos meses que não têm a letra R e sempre na lua minguante, porque assim conseguimos reduzir a taxa de açúcar e amido — explica o especialista.
O sucesso de Carlos atravessou continentes e chegou à China no ano passado, quando foi convidado pelo China National Bamboo Research Center para fazer um curso de especialização sobre a planta. Ao lado de outros ocidentais interessados no tema, ele visitou fábricas, museus, lojas, artesãos e mais de 20 cidades nas quais a planta é considerada matéria-prima fundamental. Para registrar o momento, tatuou a palavra “bambu”, em mandarim, na parte interna do punho esquerdo.

Carlos planeja ir além da produção ainda considerada artesanal no sul do Brasil. Integrante da Associação Brasileira de Produtores de Bambu (Aprobambu), da BambuBR e da Bamburgs, ele tem a ambição de ampliar a quantidade de produtores gaúchos, demonstrando as possibilidades de sua cultura.

— Podemos entrar na vida do consumidor pela cozinha. Uma vara de bambu pode virar dois cabos de vassoura que, dificilmente, se quebrarão — projeta.
Da planta ele garante não perder nada, muito menos gastar com defensivos agrícolas — porque ela não tem inimigos naturais. A palha criada a partir das folhas secas ajuda na recuperação de áreas degradadas, enquanto as folhas verdes servem de alimento para o gado.

Parece palmito
Aos poucos, o artista plástico começa a quebrar a barreira considerada por ele como a mais difícil: conquistar os moradores de Planalto. O restaurante Chapão, no centro da cidade, por exemplo, aceitou o desafio de cozinhar pratos, como risoto e estrogonofe, substituindo carnes por brotos de bambu. As especiarias são feitas especialmente para os almoços servidos aos visitantes do museu, que esticam o passeio até os bambuzais plantados por Carlos. O sabor do broto assemelha-se ao do palmito. Uma das diferenças, alerta o especialista, é que, para ter o palmito, é preciso derrubar uma árvore — e matá-la. O broto de bambu, ao contrário, é retirado da gramínea podada, o que reforça seu caráter ecológico.
Defensor do meio ambiente, Carlos brilha os olhos quando pensa na possibilidade de tornar o bambu uma matéria-prima útil no país. Depois da criação do museu, já se organiza para um passo ainda maior: erguer em cinco hectares cedidos pela prefeitura de Planalto o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Bambu Ka-Ha (“madeira do bem”, em kaingang), criado por ele. A cedência das terras na área central do município, onde antes funcionava um antigo lixão, foi feita em comodato por 20 anos. O terreno degradado deverá ser recuperado pelo instituto. A meta é gerar empregos investindo em novos plantios de bambu e na comercialização de mudas, brotos, colmos e produtos laminados.
— Não temos, no Brasil, a cultura do bambu. Ele ainda é visto como aquele negócio para fazer cerquinha para galinheiro e para servir como caniço. Precisamos dar um salto. Se em toda a Ásia é possível fazerem coisas maravilhosas, por que não no Brasil? A planta é a mesma. Basta aprendermos o manejo para gerarmos emprego e renda. E termos sustentabilidade, substituindo plástico, pinus e eucalipto — defende.

Onde fica
O Museu do Bambu e Cia. fica na Rua Benjamin Constant, 879, no município de Planalto. Visitação de terças a sextas-feiras, das 14h às 18h, e aos sábados e domingos, das 10h às 18h. O telefone para contato é o (55) 9-9916-3199. Entrada: R$ 10.

Lições do Oriente
* Os hindus acreditam que o bambu simboliza a amizade, os chineses o associam à longevidade e os vietnamitas o tornaram um símbolo nacional – porque seu processo de propagação natural é constante, assim como a renovação das gerações de habitantes do país asiático.
* Nas ilhas Andaman, perto de Myanmar, acredita-se que a humanidade surgiu de um colmo de bambu. Já os nativos das Filipinas seguiam um credo segundo o qual a primeira mulher e o primeiro homem despontaram da planta.
Fonte: Livro Bambu de Corpo e Alma, de Antonio Ludovico Beraldo e Marco Antonio dos Reis Pereira (Editora Canal 6).