Por Armindo Trevisan
Poeta, professor e crítico de arte, autor de "Como Apreciar a Arte", entre outros
Comecemos por estabelecer uma distinção. Considera-se natural o que diz respeito ao mundo e à vida, independentemente da intervenção do homem. É natural o que o homem encontra diante de si, formado ou pré-formado, que não depende de sua atuação para expandir a vida e torná-la mais apreciada.
São naturais a sede, a fome, o sexo. Cultural é o que o homem cria, inventa, elabora a partir do que recebeu da natureza. São culturais o vinho, o vatapá, o erotismo. Seria, portanto, a Cultura – caso adotemos uma definição despretensiosa – o que o homem agrega à natureza mediante sua inteligência e sua práxis. O objetivo cultural reside no aprimoramento da fruição de todas as possibilidades relativas aos sentidos exteriores e interiores do ser humano.
Apliquemos tais conceitos ao futebol.
Antes de mais nada, o futebol é uma invenção humana. Não se descobriu, nem se descobrirá um futebol entre os animais, do mesmo modo que entre eles não há poesia e música. O futebol foi introduzido no Brasil por Charles Miller, filho de um inglês que trabalhou numa fábrica em São Paulo. Ele trouxe na bagagem, em 1894, duas bolas, um par de chuteiras, um livro com as regras do futebol e uma bomba para inflar as bolas. Miller foi fundamental na montagem do time do São Paulo Athletic Club (SPAC) e da Liga Paulista de Futebol, a primeira do Brasil.
Mais importante, talvez, para o leitor seja a informação de como surgiu a bola de borracha, que foi precedida por bolas feitas de tecidos ou bexigas de vacas costuradas, invenção dos indígenas da América Central, Olmecas e Maias em especial. Por volta de 1600 a.C., esses aborígenes produziram, adicionando seiva de dama-da-noite ao látex (borracha líquida pura) extraído da árvore da borracha, bolas que saltavam muito. Elas chegavam a pesar 3,6kg. Eram usadas em jogos ritualísticos, de relevância política e religiosa, considerados uma luta entre o bem e o mal. Os vencedores eram cobertos de honras e riquezas, mas o líder dos perdedores, ao que nos garantem historiadores, era sacrificado, para que os deuses garantissem a continuidade do brilho do sol e o vigor das plantações. A bola atual foi criada por Charles Goodyear em 1839.
A ideia de coordenar os resultados de toda uma série de invenções, como o peso da bola, o espaço reservado ao jogo, a altura da grama, enfim, veio posteriormente, no século 19. Pensemos nas dimensões do gramado, na altura e largura do arco, no número de jogadores, nas cláusulas específicas sobre o comportamento dos esportistas no campo. Foi preciso, até, inventar o árbitro!
Do conjunto disso resultou um ritual lúdico moderno, sem vítimas aos deuses, mas com outras consequências socioeconômicas. Penso que se pode considerar o futebol uma convenção físico-psíquica no uso da bola e na perseguição de um objetivo: a obtenção de pontos. Devemos admitir que há nesse esporte uma coisa chamada competição, nome que, no passado, se dava às próprias partidas.
O triste é que a competição – que se converteu com o tempo numa estratégia predatória, principalmente devido ao dinheiro – perverteu parcialmente o jogo. Para ganhar, todos os meios foram permitidos. Um célebre inglês, Bertrand Russell, escreveu: "O aumento geral da riqueza não produz vantagem competitiva, e por isso não traz felicidade competitiva.(...) Na medida em que nosso desejo é competitivo, nenhum aumento de felicidade humana, no seu todo, provém do aumento da riqueza".
A folclórica canelada é já um souvenir do século em que se jogava por amor à camiseta, e até sem possuir camiseta. Quem era o árbitro no passado? Quase um santo... Sem culto, um indivíduo que parecia descer do céu em paraquedas na hora do jogo. Em que se transformou ele? Num ente problemático. Os espectadores de hoje, com um mínimo de "miolo na bola", como dizia Eça de Queiroz, suspeitam dele. Um número estatisticamente considerável de disputas foram ganhas com a cumplicidade desses homenzinhos, cuja onipotência consiste, sobretudo, num apito que nem mais as crianças apreciam.
Mesmo assim, o futebol continua cultural. Na essência, é uma invenção que se destina à distração e ao convívio social. É possível que quem jogasse no passado desejava primordialmente divertir-se. Depois, passou-se a atribuiu mais importância a uma nova classe de jogadores, os imaginários, isto é, os espectadores das arquibancadas.
Digamos com clareza: no início, os jogadores imaginários, que não tinham condições de entrar em campo, os jogadores de fantasia, aqueles que jogam por transferência, encarnando-se neste ou naquele craque, decidiram sair das nebulosas psíquicas em que viviam. Passaram a interferir nas partidas. Que é a torcida senão uma vontade subliminar de substituir os jogadores reais por jogadores imaginários, ao sabor da fantasia de cada um?
Cobra-se tudo dos jogadores reais. E pouco dos imaginários. Porque estes abandonam o campo sempre triunfais, cada um entronizado no próprio peito de torcedor.
A despeito de tudo isso, insistimos na dimensão cultural do futebol. É cultural ao menos enquanto existir um jogador ingênuo, capaz de desmanchar-se em lágrimas de emoção, quando seu craque realiza, por exemplo, um gol de bicicleta... Ou enquanto existir – suponho – um espectador superingênuo, possivelmente uma bonita morena, que no auge de seu entusiasmo aplaude um gol contra – tal a satisfação que sente com a surpresa do inesperado!
Digamos, forçando um pouco a realidade: o futebol será cultural, mesmo na mais severa das hipóteses, desde que sobre um espectador autoimunizado, que grita, berra, ri, chora, no momento em que a bola entra, ou com a colaboração espontânea de qualquer carismático jogador, como ocorreu com a famosa mão argentina que garantiu a esse país uma Copa... Lembram-se?
A bola entrou no alto de um dos cantos do arco, lá onde um atirador de fuzil telemétrico possivelmente nem conseguisse fazer entrar sua bala assassina.