Em um vídeo postado no YouTube, duas adolescentes ensinam como camuflar o celular para usá-lo em sala de aula sem gerar desconfiança da professora. Em outro, um famoso youtuber faz piadas a respeito do peso de seu fiel assistente. Em um terceiro, crianças parodiam o clipe do funk Sarrada no Ar. Do lado de cá da tela, sem supervisão de um adulto, um público imberbe vibra, ri, imita. Se estivessem juntos, talvez os pais atentassem para alguns riscos a que seus filhos se submetem em meio à infinidade de atrações na plataforma de vídeos.
No primeiro caso descrito, há a glorificação do ato de enganar alguém (e justo a professora, que, na encenação, aparece como uma palerma). Do segundo, crianças podem depreender que "é engraçado" zombar dos colegas, humilhá-los, praticar bullying. O terceiro incorpora ao vocabulário e aos trejeitos infantis a sexualização do funk.
Não à toa, pais vêm se mostrando preocupados.
– Esta é uma geração de crianças que escolhem aquilo a que querem assistir e que têm como ídolos pessoas fáceis de se identificar. Elas não contam mais com uma escala montada e definida para elas, como era o caso da TV aberta. É uma geração que tem acesso a diversos tipos de telas e plataformas e que decide ir e vir a partir do que ela gosta. Mas nem sempre esse público tem competência para lidar com o conteúdo a que é exposto – alerta a pesquisadora Luciana Corrêa, coordenadora do ESPM Media Lab.
Os novos hábitos do comportamento dos pequenos e das pequenas vêm sendo foco de pesquisas dentro e fora do Brasil. Embora a TV aberta continue a campeã de audiência no país, o tempo que crianças, adolescentes e jovens passam assistindo a vídeos na internet cresce em proporções estrondosas. Segundo levantamento de Luciana Corrêa, que desde 2015 mapeia o comportamento de quem tem de zero a 12 anos no YouTube, o número de visualizações de vídeos dos youtubers teens, por exemplo, cresceu 490% nos últimos dois anos. A pesquisa, chamada Geração YouTube, mostrou que as visualizações saltaram de 26 bilhões em 2015 para 117 bilhões em 2017.
_ No último ano, os youtubers simplesmente dominaram o país. O Brasil é atualmente o terceiro país em tempo de visualização dos vídeos, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. E é possível identificar, entre os cem canais de maior audiência na plataforma, que 36 abordam conteúdo direcionado ou consumido por crianças de zero a 12 anos _ explica a pesquisadora.
Outro levantamento, conduzido pelo Google e denominado Os Influenciadores de 2017 – Quem Brilha na Tela dos Brasileiros, comprovou que esses novos famosos online realmente estão com a bola toda. Os dados, coletados com 2,5 mil entrevistados das classes A, B e C que têm entre 14 e 34 anos, apontaram que, das 10 pessoas mais influentes no país para esse público, cinco são youtubers. Whindersson Nunes, que possui o canal com o maior número de inscritos no país (29 milhões de seguidores), pareceu no topo da lista. Ele e outros quatro jovens youtubers – Felipe Neto, Flavia Calina, Julio Cocielo e Felipe Castanhari (confira os mais populares abaixo) –, dividiram os postos com personalidades como Rodrigo Faro, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Juliana Paes e Paola Oliveira.
Entre as descobertas mais significativas das últimas pesquisas brasileiras no assunto, Luciana Corrêa destaca uma tendência já apontada em estudos realizados na Europa, que indica que, quanto mais cedo a criança é inserida na plataforma, maior será o seu consumo quando for mais velha.
– As tecnologias digitais estão influenciando a cultura infantil e assumindo papel relevante no cotidiano dos nativos digitais. E aí temos uma questão de riscos e oportunidades: a mediação parental é fundamental – diz a especialista.
Originalidade, bom humor e autenticidade se tornaram determinantes na linguagem e na maneira de produzir entretenimento para essa geração. A "fórmula de sucesso" desses youtubers é composta de um misto entre admiração e proximidade, que geram uma relação de identidade com o público.
Esses novos ídolos teens são reconhecidos pelo público como engraçados, carismáticos e polêmicos e prendem a atenção da audiência ao mostrarem cenas de seu dia a dia, num estilo "gente como a gente". Esse tipo de abordagem pode trazer benefícios para o desenvolvimento das crianças, mas também pode ser prejudicial, alerta a psicóloga Aline Restano, membro do Centro de Estudos e Pesquisa da Infância e Adolescência (CEAPIA) e do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT):
– Os youtubers falam sobre tudo, e muitas vezes acaba existindo uma banalização dos temas. Por um lado, é bom que tratem de questões como sexualidade, problemas mentais etc. Por outro, eles muitas vezes fazem isso de forma banalizada, misturando com assuntos superficiais, e a rapidez com que trazem os assuntos e os misturam faz com que tudo pareça ter um mesmo nível, gerando certa incongruência sobre o que deve ser mantido no âmbito privado e o que é assunto cotidiano. Além disso, pelo fato de muitos serem jovens, eles nem sempre têm uma dimensão sobre limites, sobre a linguagem que podem usar, sobre o que pode ser ofensivo ou configurado como bullying. E tudo isso acaba sendo exposto aos espectadores, muitas vezes sem um filtro ou uma orientação.
Para Aline, outro aspecto que pode ser tanto positivo quanto negativo é que o perfil dos influenciadores, pelas suas características, resulta em ídolos mais próximos à imagem de pessoas normais. Como consequência disso, são ídolos mais facilmente "copiados" pelos jovens espectadores.
– Não é como antigamente, em que os ídolos eram ou pareciam ser perfeitos. O fato de os youtubers terem essa proximidade com o público pode ser bom se o novo ídolo for uma boa influência, mas, dependendo do comportamento e dos conteúdos abordados, pode ser preocupante. É diferente ter uma identificação direta, como acontece hoje, pois é mais fácil de a criança ou o adolescente começar a repetir o padrão de comportamento do ídolo – observa Aline.
Na casa do técnico em prótese dentária Mateus Pohlmann, 35 anos, foi a mudança no linguajar do filho Joaquim, seis anos, o primeiro sinal de que ele começava a seguir um modelo fora dos padrões aos quais os pais estavam acostumados.
– Há mais ou menos seis meses, Joaquim começou a se interessar pelos youtubers. A gente controlava ao que ele estava assistindo, mas sem aquela sentinela do lado dele. Um dia, estávamos conversando, eu fiz um comentário e, do nada, ele respondeu: "Caraca!" – lembra o pai.
Surpreso com a expressão, que nunca era usada dentro de casa nem na escola, Matheus foi buscar a fonte de inspiração do filho – e a encontrou na plataforma digital:
– Essa é uma expressão mais antiga, não é do meio dele. Eu considero um palavrão velado. Fazendo uma busca nos vídeos do YouTube que ao Joaquim assiste, vendo o que ele pesquisou na plataforma, vimos que há vários que falam um linguajar mais chulo, que usam expressões de que não gostamos. Isso começou a nos preocupar. Mas a gente também não tem disponibilidade para assistir a tudo com ele o tempo todo.
O fato de os conteúdos estarem disponíveis em plataformas online, sem restrição de horário e tempo de exibição, e de contarem com uma regulamentação fácil de ser burlada (apesar de o YouTube ter classificação etária de 18 anos, seu público é composto, também, por adolescentes, crianças e bebês), são os principais desafios enfrentados pelos familiares. Mas, para conseguir estabelecer um diálogo produtivo sobre o que ele está assistindo e, principalmente, estar perto dele nos momentos em que ele assiste aos vídeos, é preciso, além de uma abordagem didática, ter uma boa dose de paciência:
– Esses youtubers gravam vídeos com uma velocidade, uma lógica de roteiro e uma linguagem que é estranha para os adultos – comenta Aline Restano.
– Por isso, muitos não conseguem ficar mais de dois minutos assistindo aos ídolos dos filhos. Mas estar junto para discutir o que não está legal, o que não precisava ser falado ou aquilo que é impróprio é fundamental. Para os especialistas, é preciso, mais do que nunca, educar o jovem também a ser um cidadão do mundo digital, ajudar e ensinar ele a se defender ao que é exposto.
É nesse momento que os pais também precisam de ajuda, destaca a pedagoga Claudia Bernardes, orientadora educacional do Colégio Dom Bosco Porto Alegre. A principal recomendação é acompanhar ao máximo os filhos enquanto assistem aos vídeos e, antes de deixá-los acessar os conteúdos, pesquisar para ver se estão de acordo com a idade da criança.
– Não adianta tirar o tablet ou o celular da criança; ela tem é de ter uma educação para a tecnologia. Ser curioso na internet e saber como e o que pesquisar também é um aprendizado para os pais – destaca Claudia.
Para Matheus e a esposa, a também técnica em prótese dentária Caroline Pohlmann, 35, a solução foi redobrar a dose de paciência em frente à tela do computador.
– Nossa decisão foi levar a questão de forma leve, explicando para ele o que é adequado e o que não é, fazendo graça da expressão que ele passou a repetir e tentando, sempre que possível, acompanhá-lo, cada vez por um período mais longo, durante os vídeos. Mas isso exige paciência, pois os vídeos são, em sua maioria, muito chatos e limitados. Esse espaço que os youtubers têm é bom para eles aproveitarem e falarem coisas úteis, mas eles desperdiçam a maior parte do tempo tentando ser engraçados. O grande exercício para nós, atualmente, é ficar acordado para acompanhar nosso filho nesses momentos – desabafa o pai.
Há "perigo" também depois que os vídeos acabam, alerta a advogada especialista em Direito Digital Patrícia Peck:
– Um dos problemas é a lista de vídeos que aparece como sugestão na plataforma depois que a criança assiste ao seu youtuber favorito, pois esses conteúdos estão disponíveis na palma da mão e nem sempre são apropriados para as crianças.
Uma das soluções, alerta a especialista, é priorizar o uso do YouTube Kids, um aplicativo gratuito e com experiência voltada às famílias, cuja curadoria é feita para evitar exposição de crianças a situações considera das não apropriadas para a idade.
– O grande ponto é que a maioria dos youtubers da moda, que crianças e adolescentes seguem, possuem canal no YouTube aberto, e não no Kids, porque não são necessariamente focados só no público infantil. Então o dever de vigilância, que até é trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, acaba sendo o parental. Os pais, a família ou o responsável legal é que ficam no dever de verificar o conteúdo a que a criança está exposta.
Patrícia alerta que os youtubers estão sujeitos a receber restrições da própria plataforma, mas, para isso, é preciso que os pais denunciem, pelo canal, quando identificam conteúdos não adequados.
– Vimos, nos últimos anos, um movimento de youtubers que melhoraram seu palavreado, reduziram a violência nas brincadeiras que fazem e nas imagens que expõem para não perder seguidores. Isso se deu, principalmente, por causa das denúncias feitas pelos pais – explica a pesquisadora.