Os animais não são bem como pensávamos. Eles sentem medo, sofrem dor, são conscientes, têm emoções, se estressam, desenvolvem problemas mentais. Têm mais em comum conosco do que se imaginava, revelam cada vez mais estudos científicos. O dilema é que, se nossa concepção estava errada, isso significa que nossa atitude em relação a eles também precisa ser revista? Uma das pessoas pessoas envolvidas nesse debate é o médico veterinário e bacharel em Direito Renato Silvano Pulz, 49 anos, autor do livro Ética e Bem Estar Animal e professor de uma disciplina sobre o tema na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Mestre e doutor pela UFRGS, Pulz recebeu GaúchaZH na clínica veterinária que mantém com a mulher.
Nos últimos tempos, pesquisas têm revelado fatos novos sobre a consciência e as emoções nos animais. Sabe-se, também, que eles sofrem de maneira similar aos humanos. A concepção sobre os animais mudou?
Na nossa sociedade, nós retiramos os animais da nossa esfera de consideração moral, assim como se fez no passado com os negros. O próprio Código Civil considera que eles são coisas. Por que posso vender um cavalo ou sacrificar uma vaca? Porque são minha propriedade. No passado, houve pensadores que tentaram defender os animais, mas não dispunham da comprovação científica de que os animais sentiam dor, tinham sentimentos, uma vida emocional. Há 20 anos, quando me formei em Veterinária, praticamente não se dava importância à dor, aos sentimentos. Agora, há discussão sobre isso. Em 2012, veio a declaração de Cambridge, assinada por neurocientistas e pelo Stephen Hawking (físico britânico que morreu em 14 de março), reconhecendo que os animais têm consciência.
O que quer dizer essa consciência?
Que ele sabe o que está acontecendo ao redor dele. Tem percepção de si e do ambiente. O cachorro, por exemplo, ao ver o tutor pegar a guia, sabe que é hora do passeio, ou seja, ele tem memória, identifica objetos, símbolos, palavras, tem pensamentos em relação ao futuro. Não é uma simples coisa, inerte, como uma mesa. E não são só instintos, tem linguagem, inteligência e flexibilidade comportamental. Apenas algumas espécies conseguem se reconhecer no espelho, que era um teste famoso para determinar a consciência. Mas esse teste passou a ser questionado. O cão é muito mais olfativo do que visual. Ver uma imagem no espelho talvez não faça diferença, o que importa é o cheiro. Ele sente o cheiro e sabe que não há outro cachorro ali.
Isso representa, do ponto de vista científico, uma mudança de concepção sobre os animais?
Totalmente. E a declaração de Cambridge foi muito importante. Philip Low, um dos autores da declaração, observou que, a partir daquele momento, surgiam implicações éticas importantes. Enquanto tu não assumes uma coisa, fica fácil fazer de conta que ela não existe. Mas no momento em que há provas e a ciência reconhece, fica mais complicado, por exemplo, usar ratos em um experimento sem fazer uma consideração sobre isso. Costumo levar essa discussão para a sala de aula, porque é comum o fenômeno chamado de especismo seletivo. Enxergamos que um cachorro está feliz ou triste, mas da vaca, do porco e da galinha ninguém lembra. Ponho vídeos de cavalos e vacas brincando, de aves se divertindo, porque eles também ficam tristes ou alegres.
Viver em cativeiro para produção de leite e carne gera impacto emocional nos animais?
Com certeza. Foi isso que se começou a pensar. Por isso surgiu a ciência de bem-estar e o conceito das cinco liberdades: de dor e de doenças, de fome e de sede, de medo e estresse, de desconforto e para de expressar o comportamento natural. Um cavalo gosta de pastar, de estar solto no campo junto de outros cavalos. Mas nós o criamos em um jóquei clube, por exemplo, onde ele fica preso 24 horas dentro de uma baia, só sai dali para treinar na pista. Quando fazemos isso, restringimos a liberdade dele. É o cachorro dentro do apartamento, o suíno na pocilga, a galinha na gaiola do aviário. Criamos o ambiente, a dieta, o comportamento, a genética, tudo artificial. Se pudéssemos perguntar ao cachorro do que ele gosta, ele ia querer ficar solto, correr atrás de outros cães. Restringimos essa liberdade.
Os animais são tratados como produtos?
Sim. O animal foi objetificado ao longo da História. O seu valor é atribuído em função de sua utilidade, inclusive podendo ser descartável. A ideia de que o homem é superior colocou-o num plano inferior, coisificando-o. Isso justificou moralmente o uso dele ao longo da História, até os dias de hoje. Mas como podemos usar o animal como uma coisa, se ele não é uma coisa, se há provas científicas em contrário? Estudos mostram aves fazendo testes que só crianças a partir de cinco ou seis anos conseguem fazer. Os analgésicos e anestésicos que usamos na veterinária são os mesmos que usamos em humanos, porque os mecanismos de dor são semelhantes.
Além do abate, quais são os estressores aos quais os animais estão submetidos na pecuária?
O transporte, o manejo violento, o confinamento, o isolamento, a superlotação. Há a questão do ambiente artificial. Vamos ter porcos e vacas criados em piso de cimento, o que causa lesões crônicas nas patas. E a impossibilidade de manifestar comportamentos naturais. A galinha gosta de ciscar, de subir em poleiro. No momento em que ela não pode fazer isso, começa a ficar neurótica, a adquirir comportamentos estereotipados. Existe também o problema da dieta artificial, com ração, que gera problemas digestivos, diarreia, cólicas. A genética artificial é causa de uma série de doenças.
São animais com problema de saúde mental?
Com certeza. E essas alterações de comportamento são indicadores de redução de bem-estar.
O senhor citou a escravidão dos negros no passado. É possível fazer uma analogia entre ela e a situação atual dos animais?
Essa analogia é muito usada pelos defensores dos direitos dos animais. Na História, houve a coisificação dos negros, eles eram explorados como uma coisa, tinham um dono. Dizia-se que o negro não tinha inteligência, para que se pudesse usá-lo. É parecido com o que se fez com os animais, para justificar o uso sem culpa.
As pessoas acham impensável comer carne de cachorro, mas não de vaca, porco ou galinha. É por causa do vínculo emocional?
Sim, identificamos “um outro” nos pets. Mas, em palestras, gosto de mostrar que vacas, cavalos e galinhas não são diferentes quanto à dor. Peter Singer, um dos primeiros a escrever sobre o problema, nos anos 1970, conta que foi a um evento internacional de proteção animal e houve um churrasco depois. Ele questionou: “Não tem algo errado aí?”.
Quando apareceu, Peter Singer mostrava-se preocupado em evitar o sofrimento animal. Hoje já não se fala só em evitar esse sofrimento, mas também em assegurar que o animal tenha uma vida significativa. Houve uma evolução no pensamento?
Sim. Com o livro Libertação Animal, Singer focou principalmente no sofrimento. Depois, nos anos 1980, Tom Regan, no livro Jaulas Vazias, defendeu a questão do direito dos animais de terem uma vida por si só, de não serem apenas um meio para o homem. Então, dentro da ética animal, há duas correntes. Uma, identificada com a obra de Singer, vai se esforçar para reduzir e eliminar o sofrimento. Ou seja, numa criação de suínos, a preocupação vai ser que eles fiquem em áreas livres de gaiolas, que o piso seja de terra, que eles possam expressar seu comportamento, que estejam livres de dor, de medo, de maus tratos. No entanto, continuam sendo usados para consumo humano. Essa é a teoria do bem-estar animal. A outra corrente, originada de Regan, é a dos direitos, que vão além da proteção contra maus-tratos. Defende que os animais têm direito à liberdade, à integridade física e psicológica, à vida e de não serem explorados.
Essas preocupações éticas vão impactar nossa vida?
Acredito que sim. A reflexão promoverá mudança de comportamento. Mas as dificuldades são conhecidas, e uma das maiores é a questão econômica, o argumento dos empregos gerados e do impacto no PIB. Outra forte dificuldade é a questão cultural. O antropocentrismo.
Nosso modo de vida, há muitos milênios, depende do trabalho e da proteína animal.
Exatamente. E isso foi construído, um legado histórico e cultural. Em um determinado momento, isso foi importante, hoje pode ser opção. Falo com tranquilidade, porque a minha história foi como a da maioria das pessoas. Eu comia churrasco, já gostei de rodeio, usei animais em experimentos no mestrado e no doutorado, trabalhei em jóquei clube com cavalos de corrida. Não enxergava problema, achava normal. Quando comecei a estudar o assunto, me dei conta: “Olha só, estou indo à faculdade para anestesiar, operar e salvar cães e gatos, mas no almoço como uma vaca. Qual é a lógica?”. Caiu a ficha.
O senhor se tornou vegetariano?
Sim. Antes eu nem pensava nisso, mas quando comecei a estudar o assunto e fazer esse raciocínio, há uns 10 anos, tomei uma decisão ética.
Na medida em que as pessoas ganhem familiaridade com informações sobre o sofrimento e a vida emocional dos animais, também terão de enfrentar esse dilema?
Sim. Mas existe um fenômeno que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva, que é justamente não pensar sobre um assunto que incomoda. Tenho amigos que são muito ligados a cães e gatos, como se fossem filhos, mas não chegam a pensar nisso, preferem não falar.
Como veterinário, o senhor também mudou?
Completamente. Por oito anos, fui chefe da veterinária em um quartel onde os cavalos ficavam presos 24 horas por dia em uma baia de concreto. Hoje eu não conseguiria trabalhar com isso. Questionei minhas próprias crenças. Uma vez, em um congresso, passaram um documentário sobre pecuaristas que viraram ativistas e aquilo bateu forte, senti uma culpa enorme de só ter me dado conta do que fazia aos 42 anos de idade. Realmente, acho que as sociedades do futuro vão olhar para trás e dizer: “Nossa, que barbaridades eles faziam com os animais. Como é que foi aceito isso?”.
O que o senhor acredita que vai acontecer com o consumo de carne?
Vai ser um processo muito longo, 100, 200 anos, talvez, mas vai mudar. Se pensamos no Direito, vemos que começaram a se fazer reflexões – em relação ao deficiente físico, à criança, ao negro, à mulher, à diversidade sexual. É um processo.
No limite, qualquer exploração do animal seria antiética?
Se tu fizeres a consideração de que ele sofre, tem vida emocional, dignidade, qualquer tipo de exploração será antiética. O uso da empatia coloca em xeque muitas práticas.
O que o senhor considera mais imediato fazer?
Há uma grande discussão em torno desse ponto. O movimento abolicionista não aceita qualquer tipo de exploração animal, enquanto quem aceita a teoria do bem-estar acredita que isso não vai acontecer agora, então seria melhor buscar um meio termo e fazer o máximo para evitar o sofrimento, como leis contra os maus-tratos, criação de animais soltos e abate humanitário. Na década de 1990, Tom Regan e Peter Singer fizeram um debate sobre isso em Salvador. Regan defendeu as jaulas vazias, a abolição total delas, seja para zoológicos ou para a pecuária. Singer dizia: “Enquanto a gente não tiver jaulas vazias, podemos ter jaulas mais espaçosas”. A isso, Regan respondeu que, enquanto aceitarmos o uso de animais com criação orgânica, com práticas de abate humanitário, não acontecerá crítica e reflexão. As pessoas continuarão confortáveis.
Nessa discussão, como ficam os animais domésticos, os pets?
Eles já ganharam um status diferenciado, são quase membros da família. Mas também há desafios. O grande risco, e realmente acontece, é atribuir a eles vontades e hábitos que são nossos: dietas e rotinas humanas, como passar o dia dentro de apartamento. Eles são animais gregários. Há pets com problemas de comportamento por causa da ansiedade, porque estão confinados ou isolados, sem convívio social. Os distúrbios são comuns. Correr atrás do rabo, latir para a porta, roer os móveis, fazer feridas por lambeduras.
Medicamentos são testados em animais, com a justificativa de que isso salvará humanos. Isso é questionável?
Temos uma ética utilitarista, a do bem maior. Aceitamos o uso e o sofrimento dos animais por considerar um mal necessário, pois acreditamos que haverá um bem maior em relação à saúde humana. Já a ética deontológica vai defender que quando uma coisa está errada, não tem como justificar com um bem maior. A sociedade aceita a ética utilitarista.
Qual a situação de animais que desprezamos, como baratas e mosquitos?
Em princípio, a ciência dizia que só os vertebrados tinham capacidade de sentir dor e, algumas espécies, uma vida emocional mais complexa. Nos anos 2000, identificaram características de consciência em outras espécies. Mas, em relação aos critérios dor e sofrimento, se aceita uma divisão imaginária entre vertebrados e invertebrados.
E o mosquito que transmite uma doença?
Se estou preservando a minha vida, a do meu grupo ou a da minha espécie, vou ter de tomar uma medida que não vai ser boa para o mosquito.
Esse argumento não pode ser usado também por quem defende o consumo de carne?
Estou há 10 anos sem comer carne. O ser humano não precisa da carne. Há grãos que a substituem. Essa é a questão: a situação extrema, de vida ou morte. Essa poderá justificar moralmente uma prática que cause dano ou sofrimento a outro. Uma ponderação de direitos. Mas as nossas relações com os animais, via de regra, estão longe disso. Em geral, é a vida e liberdade deles versus nossos prazeres e costumes.
Para um não vegetariano, há uma forma mais ética de consumo de produtos de origem animal?
Seria seguir a doutrina do bem-estar animal, consumir animais que vêm de granjas onde são criados livres, que foram abatidos em frigoríficos com normas de bem-estar. Reduzir o consumo já é uma medida.