De janeiro de 2016 até o último fim de semana, pelo menos seis famílias ou grupos de amigos argentinos vivenciaram uma história que remete à célebre franquia cinematográfica Esqueceram de Mim, estrelada por Macaulay Culkin e exibida com frequência na Sessão da Tarde. A sequência de fatos, na vida real, é sempre a mesma: em passagem pelo Rio Grande do Sul, o grupo de hermanos faz um pit-stop para abastecer o veículo ou pedir informações em um posto de gasolina no meio da estrada. Desatentos e apressados, os viajantes voltam ao carro e seguem o rumo. Somente após percorrerem dezenas ou centenas de quilômetros é que são tomados por uma constatação assustadora – alguém ficou para trás.
O mais recente caso ocorreu em 24 de março, quando uma família parou em um posto de combustíveis na BR-386, em Canoas, para pedir informações de como chegar à praia de Atlântida. As duas filhas, de 12 e 14 anos, aproveitaram o momento para ir ao banheiro. Sem checar se todos estavam a postos no veículo, os pais seguiram viagem e só perceberam que as gurias haviam ficado para trás quando estavam a meia hora do local de destino. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi acionada pelos frentistas, preocupados com as adolescentes, e encontrou o casal fazendo o caminho de volta, na BR-116, já em Canoas. Os agentes conduziram os pais até Porto Alegre, onde a família felizmente se reuniu.
A PRF não tem registros oficiais sobre o número de “abandonos” nem fornece os nomes dos envolvidos, para preservá-los. No entanto, afirma que o fenômeno costuma ocorrer no verão, quando caravanas de argentinos cruzam o Rio Grande do Sul em direção ao nosso litoral ou às praias de Santa Catarina.
– Normalmente, o esquecido está no banco de trás do carro. Eles citam a pressa para chegar ao destino, entram no carro correndo, sem se preocupar se a pessoa do banco de trás voltou. É falta de comunicação entre eles. Algumas vezes os encontramos perdidos procurando retornar para o local, sem saber onde esqueceram seus parentes. Não temos notícias de brasileiros que esqueceram parentes na Argentina ou no Uruguai – diz Alessandro Castro, chefe da comunicação da PRF.
O estranho hábito fascina e espanta os gaúchos: como tamanho desaviso pode ocorrer a alguém? Seriam os argentinos tomados por uma espécie de síndrome do abandono em território brasileiro?
Em geral, quem viaja pretende se desprender de suas obrigações. Turistas vivem um estado de exceção, é como se acreditassem estar fora da lei, têm a sensação de que tudo ficará bem, independentemente do que fizerem.
ALFREDO JERUSALINSKY
Psicanalista
Não é mal de argentino – na verdade, é como se fosse uma “síndrome de turista”, marcada pela distração. Segundo o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky, fundador da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), viajar é um jeito de sonhar e, nesse sonho, tudo está em ordem, em seu devido lugar. Nesse mundo arquitetado pelo desejo, nada deveria dar errado. Por consequência, torna-se impensável, na cabeça do turista, a possibilidade de se esquecer de um familiar ou amigo.
– Não é uma compulsão de abandono dos filhos que afete todos os argentinos, mas algo que atinge todos os turistas, poderia ser com holandeses ou alemães. Em geral, quem viaja pretende se desprender de suas obrigações. Turistas vivem um estado de exceção, é como se acreditassem estar fora da lei, têm a sensação de que tudo ficará bem, independentemente do que fizerem – avalia.
É como se o viajante assumisse, temporariamente, outra identidade. Nas férias, vestimos a melhor versão de nós mesmos: somos calmos, alegres e plenos. Em poucos dias, realizamos tudo o que almejávamos ter feito no ano que passou. Não há, nessa fantasia, espaço para catástrofes.
Além de afetada por uma expectativa de “dias de glória”, a mudança de comportamento pode também ocorrer em função da influência do dia a dia com o grupo, acrescenta a coordenadora do curso de Turismo da Feevale, Alexandra Zottis:
– Há vários perfis de viajantes, é claro. Mas, em grupo, eles podem ficar desfocados por estarem na estrada, ou ainda mais relaxados por estarem em férias. Algumas pessoas ficam extremamente cautelosas, checam mil vezes o passaporte ou levam mais roupas do que precisam. Já outras ficam ainda mais leves, se esquecem de tudo.
Nossos hábitos são condicionados a serem acionados por meio de referências. Sem os estímulos rotineiros, perdemos referenciais para manter nosso comportamento. Na Argentina, os postos de gasolina são azuis, mas aqui são verdes, por exemplo, e isso faz o cérebro responder diferente ao ambiente.
IVÁN IZQUIERDO
Neurocientista
A insegurança de estar em outro país também contribui para a perda de foco, acrescenta o neurocientista e coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) Iván Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro. Em um país com outro idioma, outra paisagem, outros costumes, os argentinos perdem as referências e são hiperestimulados. Resultado: ficam desorientados, displicentes e fascinados. A distração é ainda pior se a viagem é em caravana, o que provoca uma típica correria e ainda mais demanda por atenção.
– Nossos hábitos são condicionados a serem acionados por meio de referências. Sem os estímulos rotineiros, perdemos referenciais para manter nosso comportamento. Na Argentina, os postos de gasolina são azuis, mas aqui são verdes, por exemplo, e isso faz o cérebro responder diferente ao ambiente. Não é problema de memória, é desatenção mesmo – argumenta.
E por que acontece com argentinos e não uruguaios ou chilenos? Aí entra a maior presença dos hermanos aqui no Estado. Dos mais de 731 mil estrangeiros que passaram pelos controles mgiratórios da Polícia Federal (PF) nas fronteiras gaúchas de 31 de dezembro de 2017 a 26 de março deste ano, 598 mil eram argentinos – seguidos por uruguaios (105,7 mil), paraguaios (4,3 mil) e chilenos (3,5 mil).
Para além de acharmos inusitado o esquecimento de nossos vizinhos, o estranhamento talvez tenha um motivo obscuro, sugere o psicanalista Alfredo Jerusalinsky. Ele reflete que as piadas sobre esse tipo de causo são uma forma de demarcar território: por meio da risada, o gaúcho ergue um muro cultural a separá-lo do argentino:
– Os gaúchos precisam sustentar sua diferença de pertencimento a uma nação diferente, como se ser gaúcho fosse uma “nacionalidade”. Apesar da comunhão de costumes, é preciso aumentar as diferenças por meio da zombaria.