ALFREDO JERUSALINSKY
Psicanalista argentino
"Ainda lembro do dia em que a deixei. Só não me lembro onde a deixei", reza a letra de um tango humorístico composto por Le Luthiers, famoso conjunto cômico-musical argentino.
Como ocorre em quase todo tango, trata-se, também nesse caso, da perda de uma mulher. O que, certamente, não é a mesma coisa que uma mulher perdida - categoria da qual também tratam os tangos. Assinalamento que demonstra que a mera inversão da ordem de um par de palavras pode mudar não somente um significado, mas também um destino.
A perda costuma ser a consequência de um esquecimento. O esquecimento vem primeiro, e a perda vem depois: esquecemos onde deixamos as chaves e, se não conseguirmos lembrar desse maldito lugar, então, definitivamente, as chaves estão perdidas. Mas é claro que quando a perda acontece, se for verdadeiramente uma perda, fazemos força para esquecer. Aí a perda vem primeiro, e o esquecimento (se tivermos a sorte de conseguir não lembrar do que perdemos) vem depois.
Como podemos perceber, perda e esquecimento estão fortemente ligados entre si. Uma perda pode precisar de um esquecimento, um esquecimento pode causar uma perda. Por isso Freud, embora percebesse o lado cômico da coisa, tratou essa questão com todo respeito e seriedade: os equívocos de linguagem, os esquecimentos e os atos falhos não são meras torpezas carentes de significado. Pelo contrário, estão enraizados nos desejos recalcados que, por sê-lo, se armazenam na memória inconsciente. Bem sabemos que os desejos são complexos, costumam ser contraditórios e nem todos são para serem realizados. É precisamente nessas escolhas, na elaboração dessas contradições e na articulação dessas complexidades que nossa consciência passa a maior parte de seu tempo ocupada. Eis que, apesar desse laborioso controle, os desejos mais ardilosos escapam e montam suas armadilhas: torpezas, equívocos, lapsos, falsas recordações, superstições, passes mágicos, atos impensados, devaneios. E quando a consciência dorme (ou seja, quando o "eu" dorme) os sonhos fazem suas travessuras.
Também Elizabeth Bishop, autora do poema A Arte de Perder, denota o íntimo enlace entre esquecer, perder e sofrer. Versos comoventes na boca de Alice Howland (personificada por Julianne Moore no filme Para Sempre Alice), quando sua memória vai definhando atacada pelo mal de Alzheimer.
Quando nos encontramos em situações inabituais ou não conseguimos reconhecer o lugar onde estamos, é normal nos sentirmos perturbados. Nossa atenção fica fortemente capturada por coisas e pessoas que não conhecemos no esforço de decifrar o significado de gestos, objetos e atitudes que, ao mesmo tempo, nos inquietam, intrigam e fascinam. Mais ainda se estamos numa travessia por territórios diferentes da cultura a que pertencemos. Essa é, sem dúvida, uma situação propícia para esquecer e perder: a consciência fica distraída com tanta coisa em volta para observar e decodificar. Os desejos, sorrateiros, podem fazer sua festa: "brinquemos na floresta enquanto o lobo não está". Eles recuperam ali suas formas mais infantis - gastamos o que não temos em camisetas que nunca usaremos; em lembrancinhas cujo ímã permitirá que ocupem na geladeira esse lugar em que nunca mais serão observadas; nessas garrafas de bebidas estranhas que deveremos abandonar no controle de segurança do aeroporto - e bateremos a milésima foto desse lugar do qual a única coisa que poderemos afirmar com certeza é de que se encontra em alguma região do globo terrestre que não a nossa cidade.
Sim, claro, estamos falando dos turistas. Turista, seja qual for a origem, é figura folclórica em qualquer lugar do mundo. Mexicano dançando Zorba, o Grego num navio no Mar Egeu; norueguês com chapéu mexicano de aba imensa para se proteger de um sol que na sua terra não existe; americano com sua camisa terrivelmente floreada em qualquer lugar; japonês com máquina fotográfica no Louvre; francesa de topless na Martinica; brasileiro batendo selfie na pirâmide de Tutâncamon; alemão contando piada que ninguém entende na Côte DAzur; italiano bebendo vinho Lambrusco em La Rioja (Espanha); senhoritas de minishorts querendo entrar em São Pedro no Vaticano; argentinos criticando os cortes do boi no açougue de um supermercado catarinense. Pessoas fazendo coisas que normalmente não fariam, comendo comidas que habitualmente não comeriam, dormindo horas em que jamais dormiriam, bailando danças que nunca dançariam, esquecendo o que lá em casa certamente não esqueceriam.
Turista é uma condição humana que leva estampado na testa: "Tô na hora de gozar". Desejos a se realizar estão convocados. Isso sim: modelo infantil. A consciência é colocada a dormir, os devaneios precisam virar realidade. No novo lugar, transitoriamente, no verão, o turista forma parte de uma massa nômade e anônima, fascinado pelo novo tende a esquecer o anterior. O devaneio da mulher perfeita, do filho sem exigências, do carrão último modelo, está aí transformado em realidade, ao alcance da mão.
Mas é um jogo complicado tanto para o visitante quanto para o que joga em casa. Os preconceitos recíprocos costumam invadir o território brevemente compartilhado. Uns e outros acreditam ter desvelado a essência do estrangeiro quando, em verdade, suas curtas presenças acontecem apenas em situação de exceção. Argentinos capturados no enredo de um samba duma alegria que não compreendem, brasileiros que riem com espanto diante de um tango que idolatra a arte de perder.