O bullying mata. Apenas dois dias de aula no início do ano letivo bastaram para a intriga entre duas adolescentes terminar em uma tragédia que marcou a comunidade de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Marta Avelhaneda Gonçalves, 14 anos, nova na Escola Estadual de Ensino Básico Luiz de Camões, morreu após se envolver em uma briga com outra colega mais jovem, de apenas 12 anos, dentro da sala de aula. A agressão física foi consequência das provocações verbais iniciadas na véspera.
Intimidações, humilhações e ridicularizações entre alunos são frequentes em colégios, sejam públicos ou privados. Na falta de dados recentes e detalhados sobre bullying escolar, o que serve de termômetro, nas unidades estaduais, é o trabalho da Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave). A comissão foi criada por lei em 2012, mas só saiu do papel em 2015, quando uma professora e policial civil de carreira vislumbrou o potencial do projeto e decidiu colocá-lo em prática. Luciane Manfro implantou o programa em 2,3 mil das 2,5 mil escolas. Nomeou comissões regionais, conquistou a parceria de 30 instituições, como a Polícia Civil, o Conselho Tutelar e o Ministério Público, cujos especialistas compartilham conhecimento com os alunos, lançou um site (cipave.rs.gov.br) e desenvolveu apostilas de suporte. Um software projetado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) será aplicado por uma empresa especializada em pesquisa até o final do ano, para qualificar a coleta de dados. Até um mascote foi criado para auxiliar na divulgação: uma centopeia que representa a união de esforços.
– Eu acredito no que faço e que é possível mudar a realidade de uma escola. Para isso, é preciso envolvimento da equipe diretiva, dos professores, dos pais e da comunidade. A escola é de todo mundo, não só de quem trabalha nela. Mas o diretor é a alma da escola, ele tem de saber a parte de pedagogia, entender de recursos humanos, financeiros e precisa de inteligência emocional para saber lidar com as diferenças, coisa que os cursos de licenciatura não estão dando. O que é preocupante – sublinha Luciane.
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Ela instituiu o levantamento de dados no ano passado. Um questionário foi respondido pelas diretoras no início de cada semestre. A pesquisa sinalizou que o bullying é a violência mais difícil de combater. Se as provocações verbais não forem interrompidas, alerta Luciane, podem culminar em agressões físicas, como ocorreu com Marta na escola de Cachoeirinha.
– Não tem como prevenir a morte em uma agressão física, o que a gente tem que fazer é evitar que se chegue na agressão. Quando a escola aprende a trabalhar isso por meio do diálogo, diminui esse tipo de conflito – afirma.
Como nem todas as escolas responderam ao questionário nos dois semestres e a estatística é feita manualmente por Luciane, a coordenadora optou por limitar-se a uma amostragem de cem escolas aleatórias do Interior. O relatório constatou que as ocorrências de bullying cresceram 40% de um semestre para o outro (de 74 para 104). Em Porto Alegre, onde, segundo Luciane, a resistência dos diretores em participar do programa é acentuada, principalmente nas escolas mais vulneráveis, o índice aumentou 150% (de 30 para 75). O dado da Capital é um recorte de 20 das 91 unidades que estão no projeto. Não significa necessariamente um aumento nos relatos, mas, talvez, reflita o aprimoramento dos profissionais em identificar as ocorrências. Como o bullying costuma acontecer no horário do recreio, quando as crianças e os adolescentes estão sem a supervisão de um adulto, algumas escolas já estão desenvolvendo atividades que chamem a atenção dos alunos com brincadeiras, músicas e peças de teatro. Falar sobre o assunto e mostrar que o bullying pode estar atrelado a crimes como racismo, homofobia, ameaça e difamação é outra forma de conscientizá-los.
– Professores e monitores não percebem o bullying porque os alunos, já sabendo que aquilo não é legal, o praticam de forma velada – comenta Luciane.
A morte de Marta foi a consequência mais grave registrada recentemente em escolas do Estado. No dia em que a adolescente completaria 15 anos, em 21 de junho, uma manifestação marcada para ocorrer diante do colégio foi substituída por uma visita ao túmulo. Foi a primeira vez que a mãe, Teresinha Avelhaneda, 43 anos, voltou ao cemitério. Em seu perfil do Facebook, ela deixou uma mensagem: “Foi dos dias mais tristes da minha vida. Poderia estar comemorando os 15 anos da minha princesa. Só que ao invés de dar o anel (de aniversário) para ela, levei flores no cemitério. Será que existe coisa mais triste do que isso para uma mãe?”.
Prevenção depende de engajamento
Se o bullying é um desafio para os profissionais de educação, o levantamento do Cipave legitimou que a prevenção pode ser eficaz: houve redução significativa em outros tipos de violência. Os relatos de indisciplina caíram 82,9% (de 712 para 274), os de agressão verbal aos servidores, 85,4% (de 172 para 115), e os de posse, uso ou tráfico de drogas foram quase zerados – de 12 para dois. Furto ou roubo diminuíram 35% (de 229 para 43), e casos de violência física entre alunos caíram 87,3% (de 175 para 71).
O próximo passo é usar bons exemplos para atrair o interesse das outras escolas, principalmente da Região Metropolitana e da Capital. Luciane diz que os diretores tratam o projeto como mais uma demanda de governo e justificam que não há violência dentro da unidade, mesmo naquelas situadas em áreas conflagradas pelo tráfico de drogas.
A violência que o programa se propõe a prevenir vai além da agressão física. Inclui as relações interpessoais, o entendimento sobre o uso de drogas e álcool, o respeito com o outro, a igualdade entre raças, classes, gênero e orientação sexual. Discutir comportamento não é uma responsabilidade única dos pais. Tornou-se uma necessidade dentro da sala de aula. Professores e diretores precisam estar preparados para lidar com a nova realidade.
– Essa ideia de que a educação vem de casa já mudou, porque a ideia de família mudou. Não existe mais só pai, mãe, irmãos dentro de uma família. É avó que cria o neto, irmão mais velho que cuida do caçula, uma vizinha que olha os pequenos para a mãe trabalhar. Muitas vezes, o pai está preso, foi embora de casa, ou nem é conhecido – aponta Luciane.
A promotora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões de Porto Alegre, chama a atenção para a violência que parte não só dos alunos, mas das instituições, quando se transformam em ambientes hostis. As unidades, tanto as públicas quanto as particulares, devem reavaliar seus procedimentos de punição e entender que nem tudo se resolve dentro da escola. Se um ato de indisciplina corresponder a um ato infracional, o colégio tem a obrigação de comunicá-lo à Delegacia de Polícia para Crianças e Adolescentes (Deca).
– As situações de conflito que existem dentro da escola têm que estar na pauta das discussões de forma contínua e não pontualmente em cima de um fato que se torna público e toda a sociedade acaba se voltando para aquilo. Ninguém está livre de viver uma situação grave em qualquer ambiente, mas, se a comunidade tiver isso como um tema prioritário para ser constantemente conversado, também buscará recursos fora da escola – avalia Maria Regina.
A Polícia Civil está capacitando seus agentes para atender às situações de bullying nas escolas. Um projeto chamado Papo de Responsa, nascido na corporação do Rio de Janeiro, está sendo adotado no Rio Grande do Sul. Os policiais gaúchos receberam formação para abordar, com o linguajar dos adolescentes, temas como a violência no meio juvenil. Trata-se de uma conversa informal que ocorre entre o policial e os estudantes sobre assuntos do cotidiano. Segundo a delegada diretora do Deca, Adriana Regina da Costa, o cyberbullying tem sido uma das ocorrências mais frequentes, e as meninas costumam ser o principal alvo. Se o problema não for detectado e tratado, pode levar a mutilações e até tentativas de suicídio.
– No último mês, tivemos um pai que registrou ocorrência pela filha. Ela estava num estágio avançado de depressão e tinha tentado suicídio. Nós acionamos a escola e oferecemos o nosso trabalho. Embora a menina tenha saído da unidade, o agressor continua lá e precisa receber orientação – destaca Adriana.
Unesco fez alerta sobre bullying há 16 anos
Em uma pesquisa publicada em 2001, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) já havia identificado que a violência tanto no entorno quanto dentro da escola influenciava no desempenho escolar nas capitais brasileiras. Em Porto Alegre, 42% das crianças e adolescentes que responderam à entrevista disseram que não conseguiam se concentrar nos estudos em razão da violência, 33% ficavam nervosos ou revoltados e 32% perdiam a vontade de ir à escola.
A coordenadora da área de ciências humanas e sociais e representante interina da Unesco no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, considera urgente pensar políticas públicas que previnam a violência. Segundo pesquisa recente da Unesco, 246 milhões de crianças e adolescentes no mundo já experimentaram algum tipo de bullying.
– A Unesco vem alertando para o perigo que representam a violência escolar e o bullying, que podem acontecer dentro ou fora da sala de aula, no entorno e online. Os mecanismos de controle são poucos e pequenos. A violência na escola e o bullying terminam por prejudicar a vida emocional e física e o bem estar das crianças e dos adolescentes. É uma responsabilidade (dos governos), sim. Políticas públicas têm de ser desenhadas – diz Marlova.
A especialista destaca o programa Escola Aberta, uma parceria do Ministério da Educação (MEC) com a Unesco, como uma iniciativa que deu certo, ao abrir as portas das escolas à comunidade nos finais de semana. Mas, hoje, o programa está sem recursos financeiros. No site do ministério, a última atualização de escolas incluídas no projeto é de 2011.
Em resposta à ZH, o MEC alegou que a educação básica é uma tarefa constitucional dos Estados e municípios, mas que tem promovido capacitações aos profissionais da educação. Uma das poucas ações recentes em nível federal foi a promoção do Dia Nacional do Combate ao Bullying, em 7 de abril. A data, instituída por lei, marcou a tragédia do Realengo: um ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio, invadiu uma sala de aula e matou 11 alunos. Relatos de parentes davam conta de que ele havia sofrido assédios violentos quando estudante. Médicos também avaliaram que o jovem sofria de distúrbios mentais.
– Toda essa situação de violência vai criando a banalização, e as pessoas consideram normal. Nenhum país vai alcançar igualdade e qualidade na educação se os alunos experimentarem algum tipo de violência nas escolas – sustenta Marlova.
Escola Luiz de Camões tenta superar o trauma
Quase quatro meses depois, o luto ainda está presente no semblante de Fani de Oliveira, diretora da Escola Estadual Luiz de Camões, em Cachoeirinha. A sindicância que apura possíveis responsabilidades administrativas na morte de Marta Avelhaneda Gonçalves ainda não foi concluída. Uma reunião foi realizada com os pais após o episódio com a intenção de pedir compreensão e ajuda para recuperar a escola do trauma. O caso também é acompanhado por uma promotoria especializada em assuntos de educação de Porto Alegre.
O muro que contorna a unidade escolar, até então manchado por pichações, foi repintado graças à disposição das famílias dos alunos. O prédio onde ficam as salas também recebeu pintura nova. O ginásio que abrigava entulho de mesas velhas passou por limpeza, e os buracos de ventilação vão finalmente ser cobertos por janelas, que já foram compradas.
À ZH, a diretora disse que a adolescente envolvida na briga não tinha histórico de violência, que os episódios de bullying entre os alunos eram contornáveis e, até então, sem desdobramentos graves. A coordenadora da 28ª Coordenadoria Regional de Educação, Marta Ribeiro de Ávila, responsável pela gestão das escolas da região, afirmou que assumiu o cargo de confiança no início do ano. Por isso, não sabe se a unidade vinha enfrentando situações de violência antes da morte da aluna:
– Estou tentando movimentar a escola a partir de agora, focando no futuro.
Sobre o bullying que teria motivado a morte na Luiz de Camões, a coordenadora reconhece que a situação é recorrente em outras unidades escolares:
– Está complicado em todas as escolas nesse sentido de violência, em umas mais, noutras menos. Bullying acontece todos os dias.
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A tragédia pressionou a escola a integrar o Cipave. Mesmo que a implantação do projeto esteja a passos lentos, a diretora Fani garantiu que está promovendo ações com foco no emocional. Em parceria com alunos de psicologia da Faculdade Cesuca, de Cachoeirinha, grupos de apoio estão disponíveis aos pais, alunos e funcionários à noite. Comparece quem tem interesse. Um grupo de psicólogas atua durante o dia. Especialistas em Justiça Restaurativa da Capital também estão se aproximando da escola. Mas a coordenadora do Cipave, Luciane Manfro, ainda não considera que a Luiz de Camões integre oficialmente o projeto, por não ter apresentado um planejamento de ações:
– A escola já teve mais de mil alunos e hoje só tem 400. O problema lá é de relações interpessoais. Tem que resgatar o diálogo, o amor da comunidade pela escola, o respeito dos alunos pelos professores e dos professores pelos alunos.
– Nós estamos fazendo esse trabalho com as psicólogas, que está sendo muito positivo, e com o Cipave, mas também não podemos parar com a grade curricular – diz Fani.
Gomes Carneiro, um exemplo de recuperação
A Escola Estadual Gomes Carneiro, na Vila Ipiranga, em Porto Alegre, além de ter sido um dos colégios gaúchos melhor colocados no Enem 2015, se destaca na inserção da cultura de paz. Uso de drogas e bullying eram os principais problemas enfrentados pela escola antes de entrar no Cipave. Alunos novos, assim como Marta na unidade de Cachoeirinha, não eram bem recepcionados pelos veteranos.
Há um ano, a diretora Susana Silva de Souza decidiu mudar a realidade. Ela percebeu que os alunos tinham necessidade de se sentirem acolhidos e que a atenção deles deveria ser chamada de outra forma que não fosse pela punição. O diálogo passou a fazer parte do cotidiano. As atividades ultrapassaram as barreiras impostas pela grade curricular e foram planejadas de acordo com a demanda trazida diariamente pelos alunos. Os debates, as mediações de conflitos e as discussões de temas comportamentais viraram rotina.
– A diferença está na parceria. O aluno é parceiro da escola e do colega. A gente fala em educação ambiental, em valores, promove eventos artísticos, campeonatos e o dia da merenda especial. Trazemos profissionais de outras áreas para abordar os temas de interesse deles. É um trabalho de conscientização de toda a equipe – explica Susana.
Em maio, os alunos ocuparam a sala de reuniões da escola para falar sobre questões de gênero. O tema foi escolhido pelos estudantes. Eles se organizaram em grupos e foram pesquisar os significados dos termos transgênero, transexual e homossexual. De cabelo curto e boné, Esther Rodrigues Mendes, 17 anos, estudante do Ensino Médio, sentiu-se à vontade para falar da própria identidade aos alunos do Fundamental. O burburinho terminou assim que Esther começou a discursar:
– Uma das coisas mais difíceis é falar de mim mesmo. Porque penso em mim como uma pessoa que nunca conseguiu se encaixar num rótulo. Transito muito entre o feminino e o masculino. A gente vai descobrindo com o tempo, sou muito nova pra definir quem eu sou. Acredito que um dia vou conseguir afirmar com certeza. Enquanto não consigo me identificar com nenhum deles (dos rótulos), simplesmente não quero me impor só para dizer que eu sou tal coisa.
Esther foi aplaudida pelos colegas mais jovens, que finalmente entenderam seu conflito de identidade. A diretora Susana afirma que trazer esse tipo de discussão para os alunos diminui as ocorrências de bullying, pois eles passam a respeitar as diferenças. Esther ficou satisfeita com o resultado:
– Eu queria que mais pessoas levassem a sério, mas querer que uma totalidade leve a sério é difícil. A resposta que a gente teve aqui foi muito maior do que eu esperava. Consegui subir ali e externalizar coisas que eu nunca tive oportunidade de fazer no colégio. Fiquei feliz, sinto que eles foram tocados e tentaram se colocar no meu lugar.
O próximo debate dos alunos do Gomes Carneiro seria sobre racismo. Jeanderson Figueiredo Cavalheiro, 17, era um dos alunos que preparavam a apresentação. Ele é negro e já sofreu racismo na escola. Embora o preconceito ainda exista, Jeanderson acha que agora encontrou espaço para levar a discussão adiante com os colegas:
– Sinto que está havendo mudanças na escola, principalmente nas séries iniciais. Não é só negro e branco, masculino e feminino, existem outras classes.