Leia todas as histórias contadas nesta matéria:
Especial: meu irmão gêmeo morreu
Henrique: "Nunca falei a respeito. Tenho medo de que isso exploda algum dia"
Andrea: "Dizem que eu fiquei igual. As pessoas relembram dela em mim"
Guilherme: "Fiz a tatuagem para tê-lo mais perto de mim"
Maria Lúcia: "Acredito que o convívio dentro do útero deixa uma marca"
Há dois processos diferentes que podem dar origem a gestações com mais de um bebê – e cada um deles gera um tipo diferente de gêmeos. O primeiro desses processos ocorre quando o embrião, ainda nos primeiros dias, acaba por se dividir, dando origem a dois embriões. O que era para ser um indivíduo só acaba por duplicar-se. Como se trata de uma divisão, as duas partes carregam exatamente o mesmo DNA, o que significa que vão dar origem a gêmeos idênticos – os chamados gêmeos monozigóticos. Obviamente, esses gêmeos sempre são do mesmo sexo. Têm origem em um mesmo óvulo e em um mesmo espermatozoide.
– É como se fossem dois clones, porque o material genético deles é 100% igual – explica a geneticista Lavínia Schüller-Faccini.
No outro processo, que dá origem aos chamados gêmeos dizigóticos ou fraternos, é como se ocorressem duas gestações distintas em simultâneo. A mulher tem dois óvulos fecundados por dois espermatozoides diferentes. É por isso que, nesses casos, existe a possibilidade de nascer um menino e uma menina. A proximidade genética entre os gêmeos, em tal situação, fica em torno dos 50% – igual à existente entre quaisquer irmãos. Lavínia observa que é como se fossem não gêmeos que nascem ao mesmo tempo.
A distinção entre esses dois tipos de gestação múltipla é o berço de uma vasta linha de pesquisas científicas, que abarca saúde e comportamento e é do interesse de toda a humanidade. O patrono dessa vertente é o britânico Francis Galton (1822 – 1911), primeiro cientista a ressaltar que os gêmeos mereciam uma atenção especial e a fazer comparações entre aqueles que eram muito parecidos e os que apresentavam diferenças maiores, em uma época em que ainda nem se fazia a diferenciação entre monozigóticos e dizigóticos. “Sua história nos proporciona meios de distinguir os efeitos das tendências herdadas de nascença daqueles impostos pelas circunstâncias específicas de sua vida posterior", registrou Galton.
Em tempos modernos, um nome-chave das pesquisas é o psicólogo norte-americano de 78 anos Thomas Bouchard. Em 1979, ele conheceu a história de dois gêmeos idênticos que haviam sido separados ao nascer e criados por pais diferentes – Jim Springer e Jim Lewis. Os irmãos souberam da existência um do outro apenas aos 39 anos de idade. E descobriram uma coleção espantosa de similaridades.
Esses gêmeos, escreveu Bouchard, "haviam casado ambos com mulheres chamadas Linda, haviam se divorciado, e haviam casado uma segunda vez com mulheres chamadas Betty. Um batizou seu filho como James Allan, o outro, como James Alan, e ambos deram aos seus cães de estimação o nome de Toy". Os dois atuavam como policiais em meio período, fumavam a mesma marca de cigarro, preferiam a mesma cerveja, tinham o hobby da marcenaria, queixavam-se de dores de cabeça insuportáveis. Tinham a mesma altura e a mesma voz.
Bouchard convidou-os para uma série de testes e vislumbrou neles um laboratório incomparável para estudar qual a influência da genética e qual a influência do ambiente naquilo que somos – em outras palavras, o que é inato e o que é adquirido.
Em duas décadas, a equipe do psicólogo conseguiu vencer as críticas do meio científico, lançar as bases de uma nova fronteira de estudos e reunir dados sobre 137 pares de gêmeos separados ao nascer.
Essas pesquisas evidenciaram o poder irrefreável do genoma para definir o que somos. Apesar de terem sido criados em cidades diferentes, por famílias muito distintas, nas circunstâncias mais díspares, os gêmeos de Bouchard revelavam uma confluência impressionante em características de personalidade, de temperamento e de atitude. Desenvolviam a mesma inclinação política, manifestavam a mesma religiosidade, tendiam ao mesmo gosto musical e apresentavam até mesmo a propensão a derramar lágrimas furtivas na mesma cena de determinado filme. O que tinham em comum eram apenas os genes – mas como isso era poderoso.
Os gêmeos idênticos também estão na raiz de outra linha de pesquisa na ciência contemporânea: a epigenética. Aqui, o que importa não é a semelhança entre eles, mas as diferenças. Pesquisadores começaram a perguntar-se por que, tendo o mesmo genoma, gêmeos monozigóticos não são totalmente iguais. Nasceu daí a percepção, altamente promissora em termos de terapias médicas, de que não é só o gene que importa, mas a forma como ele se expressa e se manifesta em cada indivíduo.
Se Bouchard privilegiou os irmãos que foram reunidos apenas na idade adulta, muitos outros pesquisadores procuraram buscar respostas semelhantes comparando os gêmeos idênticos com os gêmeos fraternos – os primeiros por compartilharem 100% do código genético, os outros por, apesar de serem tão próximos quanto quaisquer outros irmãos, terem compartilhado basicamente as mesmas influências ambientais.
– Os dois tipos de gêmeos são interessantes para os estudos de saúde ou comportamento. Em doenças como esquizofrenia e autismo, por exemplo, há o que chamamos de herança multifatorial. Não é só genética, é genética e ambiente. Por isso, devemos ter um ambiente o mais parecido possível, para saber se houve influência genética ou não. O câncer é um outro exemplo. Você vê qual é a concordância entre pares monozigóticos e pares dizigóticos. Concordância é o seguinte: quando um irmão tem determinada característica, ver se o outro tem também. Se a concordância for maior em gêmeos monozigóticos do que em dizigóticos, há uma forte indicação de que existe uma predisposição genética para esse traço, doença ou característica que se está estudando – afirma Lavínia.
Apesar da origem distinta entre os monozigóticos e os dizigóticos e do fato de estes últimos não terem mais proximidade genética do que irmãos não gemeos, é usual que os chamados fraternos também sejam muito semelhantes fisicamente, a ponto de serem quase indistinguíveis. Mas em alguns casos a diferença pode ser profunda – o que não parece afetar a forte conexão que une os gêmeos.
Essa realidade pode ser verificada em um lar de São Vicente do Sul, na região central do Estado. De lá saiu Fernando Zucuni Furlan, o brilhante estudante de Medicina da PUCRS que morreu em dezembro passado, aos 22 anos, durante uma festa realizada na casa de um professor do curso, no bairro Assunção, zona sul da Capital – o corpo foi encontrado na piscina da residência. Ninguém sofreu essa perda de forma tão violenta quanto o irmão gêmeo de Fernando, Fábio Zucuni Furlan – que tem síndrome de Down.
O desespero começou na madrugada em que telefonaram de Porto Alegre para avisar sobre o acontecido. Fábio entrou em choque. Seis meses depois, pouco mudou. Sobe no sofá e se encolhe, para chorar por horas, ou abraça a foto do irmão e se derrama em declarações de amor. Procura manter distância do roupeiro, onde estão os pertences de Fernando, e do próprio quarto que dividiu com ele por boa parte da vida – prefere aconchegar-se no leito dos pais. Também passou a manifestar o medo de adoecer em consequência da dor que sente.
– É de cortar a alma o sofrimento dele. Toda a família sofre muito, mas ele a gente encontra de mãos postas, batendo no peito e dizendo: “Como a saudade dói, como a saudade dói”. O gêmeo era tudo na vida dele – diz a mãe, Onice.
A família notou que, logo após a tragédia, Fábio adotou o hábito de passar longos períodos, toda noite, olhando fixamente para o mesmo ponto do firmamento. Pedia para fazerem-lhe companhia e olharem juntos para determinada estrela. Onice perguntou-lhe a razão daquele ritual. Ele permaneceu calado, mas depois revelou.
– O mano está dentro daquela estrela – disse.
Por causa da síndrome de Down, descoberta apenas depois do nascimento, Fábio não repetiu o desempenho escolar do irmão – ele está na 8ª série. Mas a conexão entre os dois sempre foi profunda.
A mãe diz que Fernando adorava e protegia o gêmeo, ajudando-o a desenvolver-se. Mesmo depois que Fernando mudou-se para a Capital por causa dos estudos, os dois continuavam a falar-se todos os dias.
– Eles tinham um ligação muito forte de afeto, de amor. O Fábio perdeu a referência de mundo. Temos que buscar forças em Deus para confortá-lo. Até que dia eu aguento, não sei – desabafa Onice.