Toda vez que chega em casa, Fernanda Jienifer Dryer, 24 anos, fecha janelas e cortinas. Só depois tira a peruca, para que a fina camada de pele enxertada no lugar de seu couro cabeludo possa ventilar, e novas feridas não sangrem. Ela se esconde porque não gosta do que vê no espelho, e teme chocar as pessoas com as cicatrizes que carrega.
Sente-se prisioneira, condenada a nunca mais ter cabelo, seja natural ou implante. O acidente que sofreu não apenas a mutilou fisicamente, mas também arrancou sua liberdade. Mais de dois anos depois de ter quase todo o couro cabeludo - e parte da testa - arrancado quando seus cabelos prenderam no motor de um kart que conduzia no Beto Carrero World, em Santa Catarina, a jovem luta na Justiça para que o parque de diversões de Penha pague custos com tratamento, atendimento psicológico e perucas.
Ela ficou quatro meses internada em Santa Catarina, onde passou por 19 cirurgias. As mais doloridas foram as de enxerto, em que os médicos retiravam pele das coxas para implantar na cabeça.
A fragilidade da pele que hoje cobre o crânio de Fernanda a transformou em um cristal: qualquer descuido é motivo para que novas feridas abram e sangrem. A jovem precisa cobrir a cabeça com gaze, usar uma touca de meia-calça - que não pode ser muito apertada - e só depois colocar a peruca para sair à rua. O modelo mais adequado é feito de cabelo natural, custa R$ 7 mil e precisa ser trocado a cada seis meses. O advogado da jovem, Eduardo Barbosa, alega dificuldades em conseguir ajuda voluntária do Beto Carrero:
- Ingressamos com uma ação indenizatória por danos materiais, morais e estéticos, mas como a Fernanda tem custos mensais com o tratamento, pedimos auxílio por meio de procedimentos de urgência. Em nenhum momento o parque entendeu ser devido uma indenização.
O pedido é para que o parque pague atendimento psicológico e perucas a ela, além de cobrir o custo mensal com tratamento. Os pedidos por auxílio para atendimento psicológico e perucas foram inicialmente negados. Depois, em segunda instância, o Tribunal de Justiça (TJ-RS) garantiu o acesso.
Fotos: Ronaldo Bernardi, Agência RBS
Conforme Fernanda, a juíza da Comarca de Panambi, Katiuscia Kuntz Brust, negou o custeio de atendimento psicológico porque o município o disponibilizava gratuitamente. Em segunda instância, a Justiça entendeu que é responsabilidade do parque bancar tratamento particular, uma vez que o dano foi causado pelo estabelecimento e que os serviços públicos nem sempre são ideais.
A juíza Katiuscia esclareceu, por e-mail, que a ação tramita sob segredo de Justiça e é "vedado aos magistrados proferir opinião sobre processo pendente de julgamento", conforme a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. No entanto, afirmou que o pedido de Fernanda para pagamento de alguns atendimentos médicos "foi acolhido parcialmente, sendo que ambas as partes interpuseram agravo de instrumento".
A lesão poderia ter sido evitada caso a jovem tivesse recebido a balaclava (touca que cobre toda a cabeça, aberta apenas na região dos olhos), equipamento de segurança obrigatório em competições de kart para pilotos com cabelos compridos.
- Assisti a um vídeo com instruções de segurança em que aparecia a balaclava, mas não recebi o equipamento antes de entrar no kart - relatou Fernanda, que mora com o marido, Álvaro Ramos, 28 anos.
Jovem descobriu câncer em 2014
Como se não bastassem as provações a que tem de se submeter por causa do acidente, Fernanda foi diagnosticada com Linfoma de Hodgkin - câncer que atinge o sistema linfático - em março de 2014. No último ano, passou por oito sessões de quimioterapia e 21 de radioterapia.
- A doença se estabilizou, mas é preciso que a Fernanda tenha acompanhamento mensal de um oncologista, pois há risco de que o câncer volte. Também é crucial seguir com o tratamento psicológico - afirma o oncologista Gabriel dos Anjos.
Fernanda ficou ainda mais fraca e teve de parar de trabalhar. Conseguiu voltar ao cargo que ocupava, de analista de processos em uma empresa metal-mecânica, apenas em março deste ano.
- O acidente de kart atrasou a minha carreira. Demorei dois anos a mais para me formar e, por isso, ainda não exerço a profissão. Poderia estar em um cargo muito melhor na empresa onde trabalho - lamenta Fernanda, formada em Engenharia Mecânica.
Jovem sonha com avanço na Medicina
Fernanda evita praticar esportes, entrar na piscina ou ir à praia, pois teme se machucar. Também procura não sair em dias de vento forte, já que a peruca pode voar - se for fixada com força, a prótese provocará feridas. A gravidade da lesão ainda exige que ela receba acompanhamento de um cirurgião plástico mensalmente, para avaliar a necessidade de fazer novos enxertos de pele.
- Isso necessitaria uma série de cirurgias, e nenhuma delas muito simples. É um caso muito delicado - avalia o cirurgião plástico Carlos Kuyven.
E as palavras mais amargas que Fernanda ouviu na vida foram justamente ditas por um cirurgião plástico. Após uma avaliação do couro cabeludo da jovem em outubro de 2013, Henrique Radawanski, da equipe de Ivo Pitanguy, afirmou que seu cabelo natural não cresceria mais, e um implante seria impossível.
No laudo da consulta, o médico escreveu: "Fernanda é portadora de grave lesão, com perda quase total de seu couro cabeludo. Não existe técnica operatória, na cirurgia plástica, que permita uma restauração do mesmo. O defeito estético é permanente e irreparável, condenando a paciente a usar uma prótese capilar. Em se tratando de mulher jovem, a deformidade deverá causar severas repercussões psicológicas".
Mesmo assim, ela acredita em um avanço da Medicina que possibilite um implante capilar:
- Os médicos disseram que hoje é impossível. Mas e daqui a 10 ou 20 anos?
Por isso, Fernanda espera receber uma indenização do parque, que garanta recursos para tratamentos estéticos no futuro. A jovem gostaria de fazer um tratamento a laser para amenizar as cicatrizes e não descarta um procedimento cirúrgico para deixar as sobrancelhas no mesmo nível - devido ao acidente, a direita ficou mais alta que a esquerda.
ENTREVISTA: Elemar Dryer, pai de Fernanda
"Não quero dinheiro, quero que eles ponham cabelo de novo na minha filha"
O empresário Elemar Dryer, 46 anos, luta para permanecer forte ao lado de Fernanda. Dono de um pequeno restaurante em Tenente Portela, no Noroeste, ele falou com Zero Hora por telefone sobre o drama da filha.
Fotógrafo: Marcos Porto, Agência RBS
Após o acidente, o senhor viajou a Itajaí para acompanhar a recuperação da Fernanda?
Sim. Quando a Fernanda se acidentou, foi a 800 quilômetros daqui (Tenente Portela). Foi a pior viagem do mundo. Eu não desejo nem para o pior dos pais o que aconteceu comigo. Ver minha filha sair daqui para se divertir em um local que parece tão seguro, mas não é, e depois chegar lá e ver tua filha na UTI.
O que o senhor gostaria que o parque fizesse?
A partir do momento em que você paga um ingresso para um determinado local, ele deve se responsabilizar por sua segurança. Tenho certeza de que agora ninguém anda (no kart) sem balaclava. Minha filha teve que quase morrer lá para eles melhorarem a segurança. Não quero dinheiro, quero que eles ponham cabelo de novo na minha filha, mas não há dinheiro no mundo que resolva esse problema. Então queremos que eles arquem com as responsabilidades, porque a vida da Fernanda não é fácil. Eles são obrigados a manter a Fernanda saudável, porque somos pessoas humildes. Ela só quer viver a vida dela em paz, mas agora tem coisas que ela precisa por causa desse acidente.
Como é para um pai ver o sofrimento da filha?
Cada vez que eu vejo ela no quarto se arrumando, tirando a peruca, eu vou para o banheiro e choro, para ela não ver que a gente está sofrendo. É bem difícil. A Fernanda é uma mulher e meia, por tudo o que ela passou na vida, todo o tempo que ficou no hospital. Ela é linda, não interessa se com cabelo ou de peruca. A Fernanda é incrível, tem muita vontade de viver. Se outras pessoas passassem pelo o que ela passou, acho que não iriam aguentar. Ela é maravilhosa.
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CONTRAPONTO
O que diz o Beto Carrero World, por meio de sua assessoria de imprensa
"O Beto Carrero World prestou toda a assistência à Fernanda e seus familiares. A empresa responsável pelo kart fez contato direto com o advogado da família, em razão da responsabilidade que lhe é atribuída contratualmente. As decisões judiciais vêm sendo estritamente cumpridas. Por determinação judicial, o processo tramita em segredo de Justiça, razão pela qual, (os advogados) estão impossibilitados legalmente de prestar mais considerações a respeito do caso".