Eles só queriam brincar o Carnaval. Não queriam ir para a praia, nem para o sambódromo, nem para clubes. Desejavam simplesmente vestir uma fantasia e festejar livremente, na rua, pertinho de casa, em paz. Como nunca puderam fazer isso em Porto Alegre, iam ao Rio de Janeiro todos os anos para seguir os tradicionais blocos de rua, como o Suvaco do Cristo. Até que, em uma ensolarada quinta-feira, às vésperas da festa, os amigos se encontraram e um diálogo mais ou menos assim mudou a história do Carnaval na Capital:
- Vamos fazer um bloco para sair aqui na Cidade Baixa?
- Vamos!
- Quando?
- Sábado!
Dois dias depois, estreava na Rua Sofia Veloso o bloco Maria do Bairro, pioneiro no retorno dos blocos carnavalescos de rua a Porto Alegre. Mas a coisa não era bem um desfile ou coisa assim. Era apenas uma caixinha de som e umas 20 e poucas pessoas, cantando e festejando o pré-Carnaval no espaço mais democrático de todos, a rua. Alguns gatos pingados vestiram fantasias, outros apenas chegaram depois de ouvir de longe as velhas marchinhas e ficaram se remexendo por ali. E tinha até uma bandeira, empinada com orgulho por uma porta-bandeira. O desenho que tremulava no centro do paninho trazia a inscrição: desde 2007.
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A intuição que fez a turma incluir a conjunção "desde" naquela bandeira estava certíssima. Depois daquele dia, o desfile do bloco tornou-se maior e mais organizado a cada ano, sem falhar. A última edição, em 2013, reuniu cerca de 25 mil pessoas na Cidade Baixa, consolidando de vez a volta dessas tradicionais agremiações às ruas da Capital. E hoje, graças à iniciativa deles, outros 14 blocos se formaram e alegram o período de folia em Porto Alegre. Ah, sim, mas quem é essa turma, afinal?
As fotos do arquivo de Zero Hora mostram os desfiles da Banda DK, no final dos anos 1970, e a reunião das bandas na Rua do Perdão, nos anos 1980. Foram o ocaso dos blocos de Carnaval nas ruas da cidade
É uma gente louca, apaixonada e viciada em Carnaval. Zeca Brito, cineasta e carnavalesco; Luiza Ollé, atriz, diretora de arte e porta-bandeira; Rafael Tombini, ator e presidente e Eguer Viana, comerciante, tesoureiro e Chacrinha são os corações que pulsam por trás do sucesso do bloco que criaram naquela tarde quente de quinta-feira. Os quatro são amigos, sim, mas chegam a passar meses sem notícias uns dos outros. Quando a festa vai se aproximando, no entanto, a afinidade entre eles reaparece para reger um período de intensa convivência na organização de mais um Carnaval. Basta alguns minutos juntos para ouvir, de longe, os falares e as gargalhadas do grupo. Foi assim no encontro marcado com Donna no Bar Pinguim, na Cidade Baixa, em uma tarde certamente bem mais quente do que aquela de 2007. Quase nem foi preciso fazer perguntas. A animação deles era tanta para falar do Carnaval que bastou sentar e ouvir. E rir um bocado, claro.
Para que pudessem brincar a seu gosto, os amigos viajavam até o Rio de Janeiro, onde a cultura dos blocos renasceu há muito mais tempo. Não demorou para que se perguntassem, afinal, por que não havia mais blocos de rua em Porto Alegre.
Encontro na folia
A velha tradição das manifestações populares dos anos 1930 e 1940 e os emblemáticos Rua do Perdão e Banda DK, dos anos 1970 e 1980, eram apenas uma lembrança na memória da cidade. Carnaval, por aqui, era somente no Porto Seco, com os desfiles nas escolas de samba, ou nos bailes realizados pelos clubes. Um desejo acalentado por todos culminou com o diálogo do início desta reportagem.
- A cada ano, melhorávamos alguma coisa. Iluminamos a rua, contratamos banheiros químicos, formamos a banda. Assim, mais e mais pessoas foram se juntando, e outros blocos também nasceram - comenta Zeca.
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Em 2014, o Maria do Bairro e as demais organizações vão receber, pela primeira vez, apoio do poder público para a organização. Na época da realização desta entrevista, o pessoal ainda não sabia ao certo que tipo de ajuda viria, mas já comemorava reconhecimento do Carnaval da Cidade Baixa como parte do calendário oficial do município.
- Sempre fizemos tudo sozinhos, por nossa conta. O apoio será bem-vindo, óbvio, mas queremos manter o aspecto espontâneo da festa. Esse é o grande desafio. Legitimar os blocos sem que eles percam a espontaneidade - afirma Eguer.
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A depender da empolgação dos quatro amigos, o evento de 2014 será o mais legal de todos. No trio elétrico, a Fabulosa Banda do Bloco animará o público com a participação especial da bateria do Areal da Baronesa. Músicos de outros estilos podem dar canja, estabelecendo o caráter aberto e multicultural do Carnaval da Cidade Baixa. O traje oficial é a fantasia. Vale qualquer coisa, desde que seja divertida e espontânea. Eguer Viana não confirmou qual será seu personagem, mas é possível que incremente ainda mais o seu consagrado Chacrinha. Rafael Tombini já sabe que se vestirá de mulher. Com muito batom.
- Queremos fazer até um concurso de fantasias. Carnaval é catarse, é a liberdade de brincar com os personagens, é diversão - garante Tombini.
Para embalar os mais de 25 mil foliões esperados na Sofia Veloso, a banda do bloco entoa as velhas marchinhas que tanto sucesso fizeram em outros carnavais. Mas se engana quem pensa que só de Alalaô e Se a Canoa Não Virar vive o Maria do Bairro. Um dos principais objetivos do grupo é resgatar antigas canções que bombaram no passado em Porto Alegre, mas que agora estão esquecidas. E tem até uma inédita, composta para a folia deste ano, que homenagea os sambistas dos anos 1930, especialmente o porto-alegrense Caco Velho, compositor do samba Mãe Preta, cuja adaptação chegou a ser gravada pela fadista portuguesa Amália Rodrigues nos anos 1970.
A Rua Sofia Veloso, na Cidade Baixa, foi, desde o começo, a passarela para a passagem do bloco Maria do Bairro. O desfile deste ano, que ocorre no próximo dia 22, terá, novamente, a velha rua como palco. Entre os moradores, a folia é praticamente unanimidade.
Mas toda essa função ocorre assim, sem mais nem menos, no meio da rua? Isso mesmo. Nunca houve, desde a criação do Maria do Bairro, nenhum roubo, nenhum tiro, nenhum incidente mais grave durante a folia. O pessoal avisa com antecedência os moradores da Sofia Veloso, que tiram os carros da via, montam seus camarotezinhos privados em casa e se aprontam para brincar junto. Quem não gosta já sabe que à meia-noite em ponto a música para e a festa termina. Por isso, nunca houve grande resistência dos moradores do bairro à passagem dos foliões.
O futuro do Maria do Bairro e dos blocos carnavalescos da Capital está ligado à espontaneidade de quem participa da festa, segundo os amigos. No que depender deles, nenhum porto-alegrense ficará sem a chance de brincar o seu carnaval do jeito que mais gosta, seja em clubes, no sambódromo ou nos blocos de rua.
Rio de Janeiro, nesta época, já não é mais a única - e melhor - opção.
Antes de dividir a organização do bloco, parte da turma já se conhecia em função do trabalho. Zeca, Rafael e Luiza eram sócios em uma empresa de projetos culturais, a Maria Cultura. Eguer era o peixe fora d'água, que trabalhava na noite, como comerciante. Em comum todos tinham a paixão por Carnaval, que acabou aproximando-os ainda mais. Era normal os quatro estarem no Rio de Janeiro ao mesmo tempo, curtindo o mesmo bloco por lá.
Inventar o nome para batizar a agremiação não foi nada difícil. Da alcunha da empresa que os três amigos compartilhavam saiu meio que automaticamente o nome para o que estavam criando.
Maria, sim. Mas por que do Bairro, e não da Sofia Veloso, por exemplo? Eles explicam:
- O bloco é uma coisa da cidade, e não de uma rua específica. Porto Alegre deve se apropriar dele, a festa é aberta para qualquer pessoa, de qualquer bairro, que queira chegar e brincar. Esse é o espírito da coisa - comenta Zeca.
O mesmo espírito aberto e sem amarras é compartilhado pelos outros blocos que se formaram a partir da fundação do Maria do Bairro. Em comum eles têm a participação espontânea e livre dos seguidores e o fato dos desfiles terem se originado sempre em algum lugar da Cidade Baixa, o bairro que tem o carnaval no DNA e está sempre aberto aos que querem curtir a festa, do jeito que for.
O retorno de uma tradição
O Carnaval da Cidade Baixa é hoje um fenômeno capaz de mudar a rotina e os planos de muita gente. Engana-se, no entanto, quem julga recente a existência de blocos carnavalescos na Capital.
Pesquisadores apontam que o Carnaval no Brasil começou lá pelo século 18, por meio de uma prática dos portugueses conhecida como entrudo. Uma corrida meio desordenada pelas ruas, na qual as pessoas atiravam coisas umas nas outras - bisnagas, seringas e até fezes. Com o tempo, essa bagunça ganhou o acompanhamento dos ritmos dos africanos. Era os primórdios do Carnaval de rua nas cidades brasileiras em que havia negros e açorianos - Porto Alegre, por exemplo.
Entre as camadas mais pobres da sociedade surgiram os batuques, danças e cantorias embaladas pelos tambores dos negros. O samba nasceu daí e combinou perfeitamente com as manifestações populares, na época do Carnaval. Para compreender a essência dos blocos em todo o país, é preciso lembrar do sapateiro português Zé Pereira, que introduziu na folia carioca os instrumentos de percussão, criando, assim, os chamados blocos de sujos. A partir da segunda metade do século 19, os negros, mestiços e os mais humildes, sem acesso aos bailes que já levavam o Carnaval à alta sociedade branca, criaram os cordões carnavalescos, que divertiam-se nas ruas, sob o som da percussão.
No início do século 20 já era muito popular o Carnaval de rua em Porto Alegre. O Centro fervia de gente. Nas vias da Cidade Baixa, um carnaval particular, feito pelos negros que viviam nos arredores, crescia a cada ano, com a presença de mascarados e som de tambores, gaitas e violões entoando as marchas tão apreciadas na época. Nos anos 1930, outros bairros já tinham sua festa, com chegada do Rei Momo e tudo.
Os anos 1960 trouxeram a mudança no Carnaval da Capital. Até então, somente blocos de rua existiam para animar a folia. Com a fundação da escola de samba Praiana, inaugurou-se a era do Carnaval Espetáculo. Na década de 1970, alguns saudosos dos blocos de rua começam a criar as bandas carnavalescas. As mais conhecidas foram a Banda DK e a Banda da Saldanha Marinho. Em 1980, a Rua do Perdão foi inventada para reunir as bandas carnavalescas da Capital. Foi a última manifestação do Carnaval que acontecia de forma espontânea, na rua, fora das escolas de samba.
E eis que os blocos voltam com toda força ao cenário de Porto Alegre. Para o pesquisador Jackson Raymundo, que estuda a história da festa e seu significado para a cultura da cidade, a ascenção dos blocos não significa o esvaziamento de outras manifestações, como o desfile das escolas de samba no Porto Seco. Ao contrário. A volta deles significa que mais gente está se inserindo nesta festa popular.
- A classe média jovem se apropriou da festa com os blocos. São novos atores para o Carnaval de rua, que passa a existir com ainda mais força e mais pluralidade em Porto Alegre - afirma.