Por Daniel Seidel
Secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB, assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam)
Conheci e convivi pessoalmente, brevemente, com Dom Claudio Hummes (1934-2022) em Juína, diocese com a maior área de Floresta Amazônica preservada ao norte do Estado do Mato Grosso, principalmente pelos povos indígenas que vivem na região. Dom Cláudio com toda disposição, já octogenário, estava, àquela altura, cumprindo o mandato que o Papa Francisco havia lhe encarregado: conhecer de perto a realidade e a atuação das igrejas particulares na Amazônia brasileira, ele que era presidente da Comissão Especial para Amazônia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi em 2016. Eu estava a convite de Dom Neri José, bispo diocesano, para assessorar a Escola de Fé e Política e, sendo da assessoria da Rede Eclesial Pan-amazônica (Repam), aproveitava para conhecer melhor os desafios daquela igreja particular.
Assim, Dom Claudio cumpria o primeiro quesito para ser considerado um Francisco dos tempos atuais: vivenciou na prática “a Igreja em saída das periferias geográficas e existenciais”, como orientou Papa Francisco em sua primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, ainda em 2013.
Nos encontros que participamos juntos, ainda em Juína, naqueles dias quentes, enfrentou com humildade e firmeza o difícil debate com empresariado local, principalmente com madeireiros, defendendo e explicando as diretrizes colocadas pela Encíclica Laudato Si sobre o cuidado da Casa Comum (2015), também de autoria de Papa Francisco. Com sua eloquência franciscana, demonstrava a interligação entre a crise ecológica e o aquecimento global (e seus efeitos), destacando o papel que a floresta amazônica cumpria no equilíbrio do clima do planeta. Quanta paciência e sabedoria. Todos estávamos aprendendo a defender a ecologia integral, era algo novo e urgente. Do debate nem todos saíram convencidos, porque o chamado era para a mudança da economia na região, a valorização e o reconhecimento da rica experiência do bem-viver dos povos indígenas e das comunidades tradicionais da Amazônia que contribuíam para manter a floresta em pé e, ao mesmo tempo, uma mudança no estilo de vida. Novamente se misturaram e entrelaçaram os traços de Francisco de Assis e do Francisco de Roma.
Depois, voltamos a nos encontrar muitas vezes nas lidas da Repam Brasil e, principalmente, na preparação do Sínodo Especial para Amazônia, que teve lugar no Vaticano, em outubro de 2019, mas que foi precedido por escutas de dioceses, paróquias e comunidades, e também dos povos indígenas e das comunidades tradicionais da Amazônia. Quanta desconstrução de esquemas mentais, de concepção de mundo, para acolher a novidade (boa-notícia) que vinha da Amazônia. Mais uma vez, quantos aprendizados!
E Dom Cláudio havia sido escolhido como o principal relator do Sínodo para Amazônia. Quantos conflitos e superações realizou para que se pudesse chegar a um documento final que representasse com fidelidade aos clamores dos povos amazônicos e do bioma amazônico, convocando toda a Igreja para uma conversão integral: pastoral, cultural, ecológica e sinodal. Novamente o perfil de Francisco de Assis predomina no chamado: “Francisco, repara minha casa, pois olhas que está em ruínas”.
Destarte, a presença da Igreja na Amazônia, desde o Encontro de Santarém (PA), realizado em 1972, requeria respostas concretas: um rosto amazônico, inculturado, de diálogo, reconhecendo as sementes do Verbo na diversidade cultural dos povos que nela habitam; uma Igreja pobre, despojada, disposta a ser presença e não apenas de “visitas e missões pontuais”; valorizando a participação e lideranças das mulheres e de pessoas casadas nos ministérios e na animação de comunidades vivas e proféticas, regada com sangue de tantos mártires: com Irmã Dorothy Stang, Padre Ezequiel Ramin, Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio, Padre Josimo Tavares; Irmã Cleusa Coelho, entre tantas e tantos.
Por fim, Dom Claúdio inspira o nome “Francisco” ao então jesuíta, Cardeal Bergóglio, quando recomenda ao recém-eleito Papa: “Não se esqueça dos pobres”, ao tempo em que cumpre a missão de ser presença na Amazônia da Igreja samaritana, mariana e magdalena que cuida da vida do planeta. E, finalmente, Dom Claudio Hummes teve como seu lema episcopal, “somos todos irmãos”, justamente o tema da última Encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, onde o Francisco de Assis é evocado a cada capítulo, apontando para a necessidade de resgatar valores e o sentido de conceitos como solidariedade, política, diálogo, igualdade, soberania para se construir uma fraternidade universal.
Dom Cláudio, franciscano por vocação e congregação, revelou-se um Francisco dos tempos atuais.