A cada aniversário das netas, Jussara Trindade Terres, 64 anos, compra um bolo, capricha na decoração, marca o horário para o Parabéns a Você e tira fotos. O nascimento de Alice Terres Barbosa, 11 anos, e Helena Terres Barbosa, oito, redefiniu a vida da avó, acomodando-a com conforto em um ofício que, de início, assustou-a: avó, já?
Teria tudo para serem festinhas como tantas, não fosse um componente fundamental: Jussara mora em Guaíba, na Região Metropolitana, e as meninas, em Lauro de Freitas (BA), cidade para onde a família se transferiu por conta da carreira profissional do pai. A mudança, anos atrás, afastou as três companheiras frequentes, muito presentes nas vidas umas das outras. O começo da nova etapa foi difícil, com lágrimas dos dois lados da tela.
— Eu não conseguia ligar porque tinha vontade de chorar. Elas lá naquela distância toda... Fui uma avó muito presente — recorda a psicóloga, que não contém a emoção ao destacar que Alice já está ingressando na pré-adolescência, "não vai mais ser criancinha", temendo que isso as afaste.
A relação próxima, viva e afetuosa entre avós e netos é um grande suporte emocional para o idoso, em uma fase da vida em que a solidão e sucessivas perdas, não raro, somam-se com o decorrer dos anos. Morrem o companheiro ou a companheira, familiares, amigos. Depois de uma união de décadas, a casa passa, muitas vezes, a ter um único morador, escancarando a nova realidade. Conectar-se com os afetos, presencial e virtualmente, segue sendo uma iniciativa que requer investimento das partes envolvidas.
O médico psiquiatra e psicanalista Alfredo Cataldo Neto, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), lembra que mudanças no modo de vida e nos costumes alteraram a convivência entre avós e netos nas últimas décadas. Antigamente, havia a grande família, com marcante presença do avô e da avó, em casas, em especial no Interior, que permitiam acolhimento. Hoje em dia, visitar os avós, quase sempre, demanda deslocamento, o que substitui a convivência direta de outros tempos.
Outro ponto fundamental desse relacionamento é a representação intrínseca de segunda chance. Após a criação dos filhos, esses pais e mães são realocados em novo âmbito, podendo repetir os cuidados da primeira vez e, principalmente, aprimorá-los. Idosos que não foram tão presentes na vida dos filhos ou que erraram em outras frentes podem, nesta retomada, desempenhar esse papel de outra forma.
— A vida é uma grande professora, ela nos ensina. Por mais que a gente se sinta onipotente, que ache que sabe tudo, por mais que ache que não erra, a vida vai mostrando que você errou aqui, errou ali — diz Cataldo. — Ser avô ou avó é uma grande oportunidade. Eu recomendaria que todos tivessem netos. O neto é a nossa segunda época, a oportunidade de fazer melhor. Às vezes, a pessoa foi um excelente pai e vai ser um avô ainda melhor — acrescenta o professor.
Modelo
Na véspera da entrevista a GZH, o médico assistiu a Um Filho (2022), de Florian Zeller, com Hugh Jackman, Laura Dern e Anthony Hopkins no elenco, traçando um paralelo com o tema desta reportagem. O filme retrata as relações entre avô, filho e neto adolescente, que determinam uma situação trágica.
— Freud chamava de compulsão à repetição. Tudo o que a gente aprende na infância, sente-se impelido a repetir. Um exemplo dos animais: se você tirar os filhotes de uma gata que deu cria, as gatinhas que nasceram nessa procriação, quando engravidam, não conseguem ser mães gatas carinhosas porque não têm esse modelo dentro delas. Elas também abandonam os filhotes. As calopsitas que não conviveram com seus pais e mães, quando chocam ovos e nascem filhotes, não sabem o que fazer com eles e os abandonam. Com o ser humano, de certa forma, isso se repete. Como aprendo meu modelo de pai? Me espelhando no meu próprio pai? Pelo mesmo comportamento ou tentando fugir do modelo. Existe, dentro de nós, o inconsciente, e a gente, sem se dar conta, repete o que viveu na infância. O pai do filme não quer ser o que o pai dele foi e, lá pelas tantas, começa a se comportar como o pai dele. Só pela psicanálise se consegue corrigir isso — comenta Cataldo.
Lorena Caleffi, psiquiatra do Hospital Moinhos de Vento, destaca que a interação entre avós e netos é uma forma de incentivo para que o idoso se reposicione dentro da família. Estar aposentado ou em vias de se aposentar, com os filhos já crescidos e independentes, é comum nesse período da vida, que ainda é muito mal planejado — assim como a velhice de forma geral.
Culturalmente, existe uma dificuldade de pensar o envelhecer, que acaba não sendo preparado. No momento em que existe possibilidade de se relacionar com os netos, a pessoa se sente útil de novo. Há retroalimentação em uma relação afetiva ímpar. Assim como os avós podem ser considerados pai e mãe "com açúcar", os netos podem ser filhos "com açúcar".
LORENA CALEFFI
Psiquiatra
— Culturalmente, existe uma dificuldade de pensar o envelhecer, que acaba não sendo preparado. No momento em que existe possibilidade de se relacionar com os netos, a pessoa se sente útil de novo. Há retroalimentação em uma relação afetiva ímpar. Assim como os avós podem ser considerados pai e mãe "com açúcar", os netos podem ser filhos "com açúcar". Essa geração já tem a experiência de ter criado, educado, e há a possibilidade, pelo menos, de olhar para a próxima descendência com outros olhos. Na psiquiatria, temos uma amostra um pouco viciada, aquilo que não deu bem certo. Vemos quando filhos se afastam, quando há separação de um casal e os netos mudam de cidade. Isso acaba criando um vazio muito doloroso na vida dos avós. Fica um nada, é um segundo ninho vazio. A relação entre avós e netos é muito positiva e de prevenção de complicações: ter perspectiva de futuro, objetivos, planejamento, "quero ver meu neto se formar". Também estimula a pessoa que vai envelhecendo a continuar se cuidando para estar o mais saudável possível, investir no bem-estar pensando no futuro — comenta Lorena.
Comprovando que saúde física e mental estão intimamente interligadas, Lorena dá o exemplo de outra área do seu trabalho: especialista em tratamento da dor crônica, ela sabe que pacientes sem perspectivas na vida não melhoram.
Renascimento
Jussara e as netas que vivem na Bahia não conversam diariamente por vídeo. As meninas estudam em uma escola que preenche de atividades grande parte do dia, e a avó tem a rotina como psicóloga. Os bate-papos ocorrem, em geral, até quatro vezes na semana. Os horários variam — por vezes, interagem quando estão se preparando para o começo do dia, às 7h.
Dia desses, Alice precisava compor um poema como dever de casa. Ligou para Jussara, pedindo ajuda. A chamada durou mais de uma hora. Avó e neta inventaram um poema, que a professora acabou achando muito longo.
— Também ajudo elas a fazerem a lição quando minha filha não dá conta. Se saem para comprar roupa, às vezes me ligam do shopping, para mostrar, ou de casa, para fazer desfile. Ligam também da beira da piscina — exemplifica a avó.
Jussara acredita que a distância acaba por ser minimizada com essa forma de enfrentar a situação:
— Também atendo pacientes por vídeo. O vínculo, depois que você o cria, não interessa se é presencial. É o vínculo que importa. Sempre digo que a internet pode ser muito perigosa, e é, mas pode nos ajudar muito no sentido de aproximar. As distâncias inexistem quando você usa isso com emoção. O que conta é a emoção.
Tememos a morte. Como seguimos vivos? Por meio dos netos, de um livro, da profissão, de um legado. A maior poupança não é de dinheiro, a maior poupança é de afeto. Se tivermos muito afeto com nossos filhos e depois com nossos netos, teremos uma velhice boa, com mais tranquilidade.
ALFREDO CATALDO NETO
Psiquiatra e psicanalista
Para Jussara, a relação com as meninas representa renascimento.
— Minha primeira neta, em especial, tem um significado. Ela me ensinou a ser avó. Eu não queria ser avó, não queria envelhecer. Sou uma mulher madura que tenta se reconstruir por dentro para que isso venha para fora e me torne uma pessoal jovial — explica.
Outro aspecto que passa pelos pensamentos de Jussara é o futuro, quando nem estiver mais por aqui.
— Quem é a avó que quero ser quando não existir mais? O que quero que minhas netas lembrem de mim? Quero que abram o roupeiro da vovó, tirem tudo, vistam as roupas, botem os sapatos, façam uma anarquia e brinquem de desfile. É isso que quero. Quando eu não existir mais, quero que digam: ela fazia isso, ela era assim. O legado que quero deixar é o de uma avó alegre, com quem se pode contar, mas que também é rigorosa — resume Jussara.
Legado
Estabelecer que adolescentes não têm paciência para conversar com a terceira idade nos dias de hoje não procede. Tudo depende da qualidade dessa relação, aponta Cataldo. O histórico determina o andamento do relacionamento.
— Muitos têm nos avós verdadeiros pais. Principalmente quando o pai e a mãe falham, os avós acabam dando a cobertura necessária no dia a dia, com orientação, conselhos mais qualificados, posições mais equilibradas, e muitas vezes por causa de falhas dos pais — fala o psiquiatra.
A finitude é outro tema que passa a impactar o cotidiano na velhice.
— Tememos a morte. Como seguimos vivos? Por meio dos netos, de um livro, da profissão, de um legado. A maior poupança não é de dinheiro, a maior poupança é de afeto. Se tivermos muito afeto com nossos filhos e depois com nossos netos, teremos uma velhice boa, com mais tranquilidade. Tem pessoas que passam a vida toda atrás de dinheiro e, quando chegam mais para o final, têm muito dinheiro e quase não têm afeto. É preciso se dar conta da importância disso. A família é para toda a vida — reflete Cataldo.
O impacto da pandemia
Os anos de isolamento e distanciamento social da pandemia ainda repercutem intensamente no entorno dos idosos, a parcela da população mais vitimada pela covid-19 em todo o mundo. Quem perdeu um familiar em decorrência da doença não pôde, muitas vezes, passar por etapas fundamentais da despedida, como a visita ao paciente hospitalizado, o velório e o sepultamento.
Em incontáveis casos, o enfermo, internado às pressas e impossibilitado de receber visitas devido ao risco de contaminação, simplesmente desapareceu do convívio. Aqueles que sobreviveram herdaram o medo de uma doença que, apesar de contida e de avanço mais limitado, segue matando.
— Os familiares praticamente confinaram os idosos para protegê-los, mas, ao mesmo tempo, os idosos ficaram numa posição terrível. Isso impactou as relações — observa o psiquiatra e psicanalista Alfredo Cataldo Neto.
Os sobreviventes, trancafiados, tiveram de aderir a meios virtuais de comunicação para driblar o isolamento, o que foi um imenso desafio para muitos. Com diferentes níveis de adaptação a essas tecnologias, a vida retomou um ritmo muito parecido ao de antes do início da crise sanitária, valendo sempre ressaltar que medidas como vacinação periódica e uso de máscara, de acordo com as particularidades do indivíduo e dos ambientes frequentados, seguem sendo fundamentais. Para Cataldo, as relações afetivas entre idosos e jovens foram valorizadas nos últimos anos.
— O ser humano tem que perder para dar valor. Houve uma reaproximação muito forte por parte dos netos, por meio dos pais, e por parte dos avós. Puderam ver, chegar perto. O idoso um pouco mais letrado nessas questões online, muitas vezes, usa os netos para se aprimorar. Ele liga para o neto, que, às vezes, acha muito chatas aquelas perguntas tão simples — observa o psiquiatra e psicanalista da PUCRS.
Quanto mais a relação entre avós e netos prescindir de intermediários, melhor, analisa a psiquiatra Lorena Caleffi. Não é preciso fazer uma triangulação, a não ser que os idosos já necessitem de algum cuidado mais próximo e intensivo. No que diz respeito à tecnologia, no entanto, a introdução ou a atualização do menos entendido pode acontecer, sim, com o auxílio dos mais jovens.
— Isso também faz parte da riqueza da relação. O jovem vai ver que (a comunicação) nem sempre foi daquele jeito, e ele terá como ampliar suas capacidades, uma vez que vê o avô e a avó tendo dificuldade. Para o neto, será possível perceber que nem sempre foi da maneira como é, saber a história da sua família, ampliar o entendimento de como as coisas evoluíram. Como eram o pai e a mãe do pai e da mãe deles? Mesmo que isso não seja uma percepção consciente, ao perceber inconscientemente essa evolução, o próprio neto vai poder decidir que caminho seguir. Amplia-se uma rede de opções de modelos. Temos como modelos nossos pais, mas a possibilidade de incluir um, dois, três, quatro avós amplia o número de modelos de vida. Pode ser uma retaguarda superimportante quando o pai e a mãe não estiverem disponíveis — avalia Lorena.
O peso da covid
- Na população em geral, os casos de ansiedade e depressão aumentaram de 25% a 30% após a eclosão da pandemia.
- Sucessivas ondas marcaram a evolução da crise do coronavírus: a perda da liberdade, da saúde, da vida, o abalo financeiro e o da saúde mental.
- Retomar à vida de antes, anterior ao ano de 2020, não é algo que se resolva de imediato. Mesmo que as fases mais agudas da pandemia tenham sido superadas, a reclusão e o abandono de hábitos de vida, provavelmente, foram muito marcantes. Talvez o idoso precise de ajuda profissional para se reorganizar.